Como a canção-manifesto Tropicália mudou a MPB

Como a canção-manifesto Tropicália mudou a MPBLaís Franklin

Canção-manifesto do movimento de mesmo nome, estrelado por Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Tropicália” sintetiza as contradições culturais do fim da década de 1960. Naquele momento, acirrava-se o embate entre a persistência das tradições regionais vinculadas ao universo rural “contra” um processo acelerado de urbanização e modernização que expunha parcelas crescentes da população à cultura de massas e a fenômenos globais como a contracultura e a revolução sexual.

O resultado dessa mistura, ora pacífica, ora conflituosa, quase sempre caótica, era, na linguagem dos tropicalistas, a grande “geleia geral” brasileira, expressão que mais tarde daria título à canção de Gilberto Gil e Torquato Neto. Adotando o “recorte” e a fusão de elementos retirados de contextos diversos, característica da época, os autores da tropicália, já nessa canção de Caetano, consagraram a bricolagem como método de criação.

Estabelecido no cenário musical brasileiro no simbólico ano de 1968 — marco de agitação dentro e fora do Brasil, que culminou, no país, com a decretação do AI-5 e o endurecimento da repressão política —, com o lançamento do álbum-manifesto Panis et Circensis, o movimento teve sua origem disparada pouco antes, na canção “Tropicália”, de Caetano.

Poucos meses antes da composição da canção, em 1967, o compositor assistiu a Terra em Transe, filme do também baiano Glauber Rocha, considerado por Caetano o deflagrador da tropicália. Inspirada na obra de Glauber, a música integrou o álbum Caetano Veloso, lançado no mesmo ano. O título foi sugestão de Luís Carlos Barreto, diretor de fotografia do filme de Glauber.

É o nome do “penetrável” que Hélio Oiticica expôs no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: uma instalação em formato de labirinto ambientada com plantas, areia e uma TV ligada, além dos seus parangolés, obra de arte feita com pedaços de pano para ser vestida no corpo. Caetano não conhecia Oiticica e só aceitou o título como provisório. Mais tarde, o nome firmou-se na canção e no movimento e passou a definir tanto a arte visual de Oiticica quanto a música de Caetano, Gil e companhia. O movimento tropicalista foi definido pelo poeta Waly Salomão como “topos de conciliação dos contrários, da inconciliação dos mes- mos”. A canção Tropicália segue essa trilha, com sua colagem cubista de elementos que conviviam no país nos anos 1960, e passou a disputar espaço nas rádios, TVs e vitrolas domésticas com a bossa nova, a jovem guarda e as canções de protesto contra a ditadura.

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Em “Tropicália”, a utilização de elementos distintos, por vezes contraditórios, também está presente no arranjo do maestro Júlio Medaglia, que aproxima instrumentos clássicos de populares e incorpora recursos de música de vanguarda como sons eletrônicos, dissonâncias e elementos aleatórios. Também se combina a tensão provocada por sons violentos e marcados dos metais com o ritmo de carnaval que pontua os refrões. Estes, por sua vez, concentram as imagens opostas da letra, como bossa/palhoça, Ipanema/Iracema e Carmen Miranda/banda, em referência à música A Banda, de Chico Buarque, que em 1966 havia vencido o Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Carmen Miranda, por sua vez, representa, nas palavras de Caetano, “um emblema tropicalista, um signo sobrecarregado de afetos con- traditórios”, os mesmos que ele reuniu, à moda quase surrealista, na imagem de país composta em “Tropicália”.

Este texto faz parte do Especial “100 Canções Essenciais da MPB” e foi originalmente publicado em 2008

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