
Joana Zeferino da Paz se mudou do Rio de Janeiro após descobrir um esquema de narcotráfico e entrar em programa nacional de proteção à testemunha. Personagem interpretada por Fernanda Montenegro em filme passou os últimos anos de vida em Salvador
Da janela de casa, no Centro de Salvador, Joana Zeferino da Paz gostava de admirar o pôr-do-sol. Anos antes, da janela de um apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro, a vista era diferente. De lá, ela observou, gravou e denunciou crimes de narcotráfico, fato que a fez entrar no programa de proteção à testemunha, trocar o nome para Vitória e deixar o estado para viver na Bahia.
Interpretada por Fernanda Montenegro no filme “Vitória”, produção original Globoplay que estreou nos cinemas de todo o Brasil nesta semana, Joana viveu durante 17 anos na capital baiana, onde morreu em agosto de 2023.
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Joana faleceu aos 97 anos e o corpo foi enterrado no Cemitério Campo Santo, no bairro da Federação, com os “dois nomes”: Joana Zeferino da Paz “Dona Vitória”. Logo abaixo, o epitáfio há uma justa homenagem para “a heroína por trás da câmera que ajudou a história de um bairro e marcou o país”. [Veja foto abaixo]
Lápide onde está o corpo de Joana da Paz, em cemitério na capital baiana
João Souza/ g1 BA
Teoricamente, por questões de segurança, até a data da morte ninguém deveria saber a verdadeira identidade de “Dona Vitória”. No entanto, não gostava de ser chamada desse modo e fazia questão de manter vivo o nome de batismo, na Bahia, segundo pessoas que conviveram com ela.
No prédio onde morava em Salvador, alguns vizinhos a chamavam carinhosamente de “Jojo” e ouviam, com a atenção, a história da mulher que conseguiu ajudar a colocar na cadeia mais de 30 pessoas, entre traficantes e policiais. Com registros feitos através de uma câmera VHS, ela flagrou atividades ilícitas na Ladeira dos Tabajaras, favela em Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro.
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Joana Zeferino da Paz em 2006, com sua câmera
Fábio Gusmão/Arquivo/Extra
Um dos antigos vizinhos dela em Salvador é Paulo Bevilacqua, que conheceu Joana em 2017, quando se mudou para o mesmo prédio onde ela morava há mais de uma década. Ele percebeu que a idosa, na época com 90 anos, vivia sozinha e precisava de ajuda com alguns serviços domésticos.
A partir de um gesto de solidariedade, surgiu uma amizade que depois virou família. O laço foi tão forte que, quando Paulo se tornou pai, colocou o nome da filha de Joana.
“Comecei a ajudar comprando as coisinhas dela na rua, carregando compras e desenvolvi muito carinho pela pessoa que ela era. Na realidade, Dona Joana foi a mãe que eu não tive. E ela me chamava de meu filho, chamava de anjo”, contou.
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Diploma de massoterapeuta de Joana da Paz
Arquivo pessoal
Paulo descreve Joana como uma mulher alto-astral, lúcida e muito carinhosa. Apesar de ter tido uma infância marcada por pobreza e abusos na pequena cidade de Quebrângulo, no agreste de Alagoas, ela superou as adversidades e reconstruiu a vida na cidade do Rio de Janeiro, onde se especializou como massoterapeuta e comprou o tão sonhado apartamento em Copacabana.
A mudança forçada para a Bahia, em 2006, foi consequência da denúncia criminal. Devido aos riscos à própria vida, já que do imóvel onde ela filmou os crimes ocorridos na Ladeira dos Tabajaras era possível identificá-la, Joana entrou para o Programa de Proteção à Testemunha do governo do Rio de Janeiro e foi obrigada a deixar a moradia, onde residiu durante 36 anos.
A esteticista Danielle Gomes, ex-companheira de Paulo e também amiga de Joana, contou que apesar de gostar de Salvador, Joana falava com tristeza sobre a saída do apartamento na Praça Vereador Rocha Leão.
“Ela falava muito do Rio e falava que tinha ficado triste em ter que sair de lá daquela forma, tudo tão rápido”, contou.
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Massoterapeuta, artista e religiosa
Um dos quadros pintados por Joana da Paz
Arquivo pessoal
Assim como é citado no longa, a Joana da vida real também era artista. Nas casas de Paulo e Danielle, estão espalhados diversos quadros pintados por ela. Em sua maioria, as obras retratam lembranças do passado, quando viveu em uma fazenda em Alagoas. Antes da mudança radical pela qual passou, ganhou até alguns prêmios pelas telas.
Na capital baiana, por causa das limitações impostas com o avançar da idade, ela não costumava sair tanto. A rotina era rigorosamente pautada nas orações: assistia missa pela televisão no início da manhã, rezava em outros momentos ao longo do dia e, quando possível, visitava a tradicional Igreja de São Pedro, no Centro de Salvador.
Muito religiosa, no apartamento com vista para o mar ela também mantinha várias imagens de Nossa Senhora e de Santa Dulce dos Pobres, soteropolitana que se tornou a primeira santa brasileira. [Veja abaixo]
Danielle Gomes e Joana da Paz
Arquivo pessoal
Danielle contou que a idosa ficou extremamente feliz ao saber que Fernanda Montenegro, atriz que admirava, iria interpretá-la no filme que leva o mesmo nome. Ela ainda estava viva durante as gravações, por questões de segurança, não foi interpretada por uma mulher negra na ficção.
“Ela falava com orgulho sobre a história dela e, apesar de todas as dificuldades que enfrentou, tinha uma alegria de viver muito grande”, contou Danielle.
Para Paulo, a amizade inusitada com a vizinha idosa foi “um encontro de outras vidas” e uma verdadeira escola sobre força e resiliência.
“Essa mulher é um símbolo de força, ela foi uma vencedora. Não existe coincidência, acho que cheguei em um momento crucial para que ela finalizasse esse ciclo assistida e com carinho. Mas, na realidade, era ela quem cuidava de mim”, disse.
Programa de Proteção à Testemunha
Joana da Paz admirando o pôr-do-sol no apartamento onde viveu, em Salvador
Redes sociais
A política de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas existe através do programa federal e dos programas estaduais. Joana ficou sob proteção do estado do Rio de Janeiro e, ao g1, a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos informou que não pode fornecer os dados sobre o período em que a idosa ficou no programa.
A representante do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) explicou que não é permitido passar informações sobre pessoas assistidas no programa, mesmo após a saída delas. O posicionamento do MDH se baseia no fato de que existem muitas estratégias sigilosas e a revelação de algumas delas pode prejudicar pessoas que ainda são assistidas.
Mesmo assim, a representante do MDH explicou alguns pontos interessantes sobre o programa e que podem ser observados na história de Joana Zeferino da Paz. Confira:
o processo de alteração de nome não é obrigatório e também não precisa ser permanente;
a vítima ou testemunha pode pedir para sair do programa quando quiser;
os familiares da vítima ou testemunha também podem entrar no programa, caso haja necessidade;
ao entrar no programa, a vítima ou testemunha pode receber subsídios financeiros mensais para conseguir recomeçar a vida em outro local, onde não haja risco de vida.
No site do MDH, há mais informações sobre o programa, que pode ser solicitado por vítimas ou testemunhas que se sintam ameaçadas e que tenham colaborado com investigações ou processos criminais.
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