Um Conto de Natal: uma crônica familiar da era do ecstasy

Um Conto de Natal: uma crônica familiar da era do ecstasyLaís Franklin

Na ceia de Natal da família Vuillard, o prato de resistência é o ressentimento. Alguns parentes chegam a trocar socos, como os cunhados Henri (Mathieu Amalric) e Claude (Hippolyte Girardot), no estilo das mais desvairadas comédias italianas.

Como o passaporte do filme Um Conto de Natal é inegavelmente francês, a maioria dos personagens prefere se espetar com o florete da ironia, ao longo de caudalosos 150 minutos de estocadas verbais. Tal como acontece em seu filme anterior, Reis e Rainha, o diretor Arnaud Desplechin convida para sentarem-se à mesa dos Vuillard temas não exatamente palatáveis, como a morte e o ódio.

O filme começa com uma detalhada explicação sobre a morte precoce de Joseph, o primogênito do casal Junon (Catherine De- neuve) e Abel (Jean-Paul Roussillon). Sobre- viveram três outros filhos: Elizabeth (Anne Consigny), a controladora da ordem; Henri (Amalric), o demolidor; e Ivan (Melvil Poupaud), o conciliador. Já nas primeiras cenas, sabe-se que a morte ameaça outra integrante do clã, a matriarca Junon, que precisa de um transplante de medula do parente mais compatível.

Por ironia, a compatibilidade genética e a emocional divergem drasticamente, já que o mais apto à doação é justamente Henri, o filho que odeia a mãe e é correspondido — como eles declaram cara a cara, com cortesia cínica. As cenas médicas são, aliás, de uma crueza estonteante. O paralelo entre a decadência física e psicológica é claro. Desplechin afia seus instrumentos de cirurgião ao dissecar os sentimentos ocultos de uma família em crise.

Nenhuma parcela da complicada carpintaria emocional do roteiro funcionaria, no entanto, sem a cumplicidade de um elenco dos sonhos, em que brilham também atores como Chiara Mastroianni, Laurent Capelluto, Emile Berling e Emmanuelle Devos — que foi a estrela maior de Reis e Rainha. No caminho dos personagens, Desplechin, autor do roteiro em parceria com Emmanuel Bourdieu, assinala suas referências, que passam pelos filósofos Friedrich Nietzsche e Ralph Waldo Emerson, pelo dramaturgo Anton Tchecov e particularmente pelo Ingmar Bergman de Fanny e Alexandre — filme que, em entrevistas, o cineasta francês admite conhecer de cor.

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Até pelo tom sombrio, Um Conto de Natal não é mera atualização do luminoso — e brilhante — filme de Bergman. É uma crônica familiar da era do ecstasy, com menos poesia, mais histeria, mas, ainda assim, algumas possibilidades de resgate, cura e perdão.

O filme está disponível no streaming do Prime Video. Confira o trailer a seguir:

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Esta crítica faz parte do acervo da Revista Bravo!

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