Trump sabe que aquário não é sopa de peixe (por Felipe Sampaio)

Na Política, nem sempre é simples distinguir em que grau o indivíduo está agindo em favor do bem comum, ou em benefício próprio. Às vezes, tem uma certa dose de cada coisa, em proporções variáveis.

O ex-presidente ianque Barak Obama fez um desabafo a esse respeito no documentário “The Final Year” (2017), que trata das Relações Exteriores no seu último ano de mandato. Fez um mea culpa por ter tratado Vladmir Putin como um estadista que falava em nome do interesse nacional da Rússia. Obama perceberia tarde demais que os objetivos pessoais do ex-agente da KGB predominavam sobre o Estado e o povo russo.

Neste final de 2024, o mundo se pergunta o mesmo em relação ao presidente americano eleito. Até que ponto, em um segundo mandato, Donald Trump utilizará o poderio econômico e militar dos EUA em favor da Nação, ou do seu projeto particular. Afinal, o narciso de Trump hospeda aquelas distrações terrenas que constituem o fetiche da política (com “p” minúsculo).

O que não quer dizer que ele seja incapaz de interpretar a conjuntura interna e a cena internacional, ou de enxergar as ameaças e oportunidades oferecidas pela geopolítica e pelos mercados. Muito pelo contrário, ninguém chega à Casa Branca duas vezes por ser bobo.

Sendo assim, Trump e seu braço direito Musk certamente sabem que a capacidade industrial americana, somada às recentes descobertas de petróleo e gás de xisto na América do Norte, trazem uma tranquilidade ao Tio Sam com relação ao que se pode chamar de Espaço Vital da nação. Inclua-se aí a vasta disponibilidade de terras habitáveis e agricultáveis, abundância de hidrovias fluviais de baixo custo, acesso a dois oceanos e a juventude da população estadunidense.

Segundo o consultor geopolítico da CIA Peter Zeihan (O Fim do Mundo É Só o Começo – 2022), essas “vantagens geográficas estratégicas” permitem que o governo americano reduza sua presença direta em crises regionais mundo afora, que foi indispensável durante a Guerra Fria. Não era à toa que ainda em 2013 Obama já dizia que os EUA não seriam mais a “polícia do mundo”.

Trump sabe que se os Estados Unidos quiserem (e eles querem) continuar sendo a potência líder global, precisarão rearrumar o tabuleiro geopolítico. O resto do mundo também já sabe disso. Aos 45 minutos do segundo tempo, Biden já é página virada do folhetim internacional.

Quem resume bem esse cenário é o analista Niall Ferguson, no seu artigo “A Mudança da Vibração Global” (The Free Press, 2024): “O eleitorado americano reelege decisivamente Donald Trump. Consequência: o governo alemão cai, o governo francês cai, o presidente sul-coreano declara lei marcial, Bashar al-Assad foge da Síria. Há uma reação em cadeia econômica também: Bitcoin sobe, o dólar sobe, ações americanas sobem, Tesla sobe. Enquanto isso, a moeda russa enfraquece, a China afunda ainda mais na deflação e a economia do Irã cambaleia. Parece que Trump já é presidente”.

Ferguson fecha a tampa do ataúde da velha ordem, concluindo: “A mudança de vibração na cultura é sobre o modo fundador versus os comitês de diversidade e inclusão; a mudança global é sobre paz através da força versus a ordem internacional liberal em desintegração. Agora é O Papai Chegou”.

O inusitado governo Trump-Musk, armado com novos computadores quânticos (e velhos mísseis), sabe também que os EUA têm que correr contra as mudanças climáticas que podem bagunçar a geopolítica (e os negócios). Também sabe que, como diziam os antigos russos, você pode transformar um aquário numa sopa de peixe, mas o contrário é impossível.

 

Felipe Sampaio: cofundador do Centro Soberania e Clima; atuou no setor privado; chefiou a assessoria do ministro da Defesa; é membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; dirigiu o sistema de estatísticas no ministério da Justiça; é chefe de gabinete da secretaria-executiva no Ministério do Empreendedorismo.

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