Novo soro contra picada de abelhas africanizadas pode ajudar a reduzir mortes por ataque


Pesquisadores devem realizar últimos testes antes de submeter medicamento à Anvisa. Produto tem potencial para ser comercializado no exterior e utilizado no SUS. Acidentes mais comuns são com picadas de abelhas-europeias (Apis mellifera)
Kathryn Wells/iNaturalist
Dados do Ministério da Saúde indicam que, de 2007 a 2022, o número de incidentes com picadas de abelhas aumentou em 18.479 casos. O número de mortes segue também uma tendência de crescimento, tendo saltado de 18 para 78 óbitos.
Os acidentes mais comuns são com picadas de abelhas-africanizadas (Apis mellifera), uma mistura da abelha-europeia com a abelha-africana (Apis mellifera scutellata)
Espécie exótica, a abelha é muito criada no país por conta da alta produtividade de mel. Apesar disso, é extremamente agressiva quando precisa se defender e costuma atacar com facilidade.
Com a aproximação desses insetos na área urbana e o aumento constante de casos, pesquisadores da Unesp desenvolveram um soro antiapílico para socorrer as vítimas de picadas da abelha africanizada. Eles se dedicam à pesquisa há, pelo menos, 14 anos.
Nós buscamos inovar na maneira como são produzidos os soros antipeçonhetos no Brasil, que datam mais de 120 anos. Para retirar o ferrão das abelhas, nós colocamos nas colmeias uma placa de vidro com pequenos filamentos metálicos ligados a uma pilha. Isso gera um leve choque que, quando as abelhas pousam, reconhecem como agressor e picam. Como o ferrão não fica preso no vidro, as abelhas continuam vivas e seguem o voo, mas deixam uma preciosa gota de veneno que é raspado no final
Segundo o pesquisador e autor da patente, a estratégia utilizada não prejudica as abelhas, que seguem suas vidas livremente.
Para retirar o ferrão das abelhas, pesquisadores colocaram nas colmeias uma placa de vidro com pequenos filamentos metálicos ligados a uma pilha
Arte UNESP
“É um trabalho complexo, que foi iniciado na minha pós-graduação, em 2001, mas comecei a focar no soro quatro anos depois. A patente foi depositada em 2015 e foi concedida em 2023. Ao todo, foram 14 anos até conseguirmos patentear porque é um processo pensado a longo prazo, que exige muito”.
“Fizemos os estudos básicos, depois veio o desenvolvimento da metodologia e do produto, a submissão da patente, a publicação de artigos e a produção de lotes do medicamento. Tudo isso fez parte da fase 1 e, depois de todas essas etapas, é que realizamos os testes em humanos na fase 2”, explica Rui.
Testes em cavalos
Assim como os soros contra picadas de serpentes, aranhas e escorpiões, os testes do soro da abelha africanizada também começaram a ser testados em cavalos.
Assim como os soros contra picadas de serpentes, aranhas e escorpiões, os testes do soro da abelha africanizada também começaram a ser testados em cavalos
Tim Higgs/iNaturalist
De acordo com Rui, os cavalos são usados para a produção dos anticorpos e recebem algumas pequenas doses do veneno.
“Foi um grande desafio descobrir o que estava causando as dores dos cavalos. No início, percebíamos que eles sentiam dores intensas e que tinham, até mesmo, reações alérgicas. Isso além de prejudicar o animal, que tentávamos evitar, não nos dava dados necessários”, conta Rui.
Ideia dos pesquisadores é que antídoto seja produzido em massa e disponibilizado no SUS para que toda a população tenha acesso
Ali and Brice/iNaturalist
Para resolver a questão, Rui e um dos coautores da pesquisa, o pesquisador do Butantan Daniel Pimenta, começaram a mapear toda a composição bioquímica do veneno para conseguir identificar quais componentes eram, de fato, necessários para produção de anticorpos e o que estaria causando um efeito tóxico nos cavalos.
Foi aí que detectaram que as toxinas melitina e fosfolipase, presentes no veneno das abelhas e responsáveis por causar dores, poderiam ser isoladas. Assim, era possível impedir o sofrimento dos cavalos.
Depois que os cavalos produziram os anticorpos contra as toxinas presentes, o sangue do animal foi coletado para produção do antídoto e para o início dos testes em humanos.
Testes em humanos
Os testes com o soro foram realizados em 20 pacientes dos municípios de Botucatu (SP) e Tubarão (SC). Eles foram recrutados a partir de um estudo clínico aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
“As pessoas foram muito bem selecionadas. Eram pacientes que tinham recebido de sete a 2 mil picadas cada um. Os resultados foram impressionantes, pois identificamos em todos eles uma melhora depois da inoculação do soro”.
Dosagem ideal para cada tratamento depende do número de picadas sofridas pelo paciente
Reiner Richter/iNaturalist
Rui reforça que os testes foram determinantes para encontrar a dosagem ideal para cada tratamento. “Isso depende muito do número de picadas. Foram inúmeras pesquisas para saber a concentração e quantidade de veneno inoculado por uma abelha”.
O resultado dos testes em humanos foi publicado em 2021 na revista científica Frontiers in Immunology.
O futuro
O produto desenvolvido pelo grupo de pesquisadores mostrou-se seguro e agora precisa de um número maior de pacientes para provar estatisticamente a eficácia. Este será o estudo clínico de fase 3, que é o último antes do registro do produto pela Anvisa.
O produto desenvolvido pelo grupo de pesquisadores mostrou-se seguro e agora precisa de um número maior de pacientes para provar estatisticamente a eficácia
Abhishek N. Prasad/iNaturalist
“A nossa ideia é que seja produzido em massa e disponibilizado no SUS para que toda a população tenha acesso. Temos mais de 35 mil acidentes ao ano no Brasil, com cerca de 150 óbitos. É um problema de saúde pública que não existe tratamento específico, ou ‘antídoto’ disponível no mundo”, pontua.
Rui explica que alguns outros soros antiapílicos contra picadas de abelhas foram desenvolvidos no mundo, mas que os trabalhos ficaram apenas em laboratórios, não sendo comercializados.
“Este é o primeiro a ser utilizado em pacientes humanos e já com sucesso. Além disso, é o primeiro soro do mundo que poderá ser exportado brevemente pelo Brasil para outros países. Com certeza nosso país não tem a tradição de exportar medicamentos. Além disso, foi desenvolvido 100% em uma universidade pública brasileira e também produzido por institutos públicos”, destaca.
Além de Rui Seabra e Daniel Pimenta, o estudo envolveu os pesquisadores da Unesp Benedito Barraviera e Ricardo de Oliveira Orsi, e Luis Eduardo da Cunha, diretor científico do Instituto Vital Brazil – laboratório de produção de soros e medicamentos que pertence ao estado do Rio de Janeiro.
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