“Cuidar Até o Fim”: livro compartilha um olhar carinhoso e sem tabu para a morte

“Cuidar Até o Fim”: livro compartilha um olhar carinhoso e sem tabu para a morteBeatriz Lourenço

Seria indelicado dizer o óbvio? Pois nenhum de nós escapará de lidar com a finitude — a de quem amamos profundamente e a nossa própria. É uma questão de tempo, mas não só. Também é questão de aceitar a natureza da existência, fortalecer o que nos une e aliviar o sofrimento.

Autora de best-sellers como A Morte É Um Dia Que Vale a Pena Viver e Histórias Lindas de Morrer, a médica Ana Claudia Quintana Arantes acaba de lançar Cuidar Até o Fim — Como Trazer Paz Para a Morte (Editora Sextante). Na prática e ensino dos cuidados paliativos, ela desafia medos e tabus para levar conforto a pacientes, familiares e profissionais de saúde. Aos seus leitores, oferece uma chance única de olhar de frente para o tsunami que a morte forma, sem perder o fôlego para fazer o que mais importa: cuidar.

Nas mãos de Ana Claudia, o cuidado é um mergulho em profundidade nos sentimentos humanos. Ao contar histórias de pessoas que acompanhou de muito perto até o último instante, compartilha: “A paz de quem cuidou até o fim permanece entre nós”. É uma leitura que demanda coragem (e lencinhos), mas que jamais quebra o elo do sentir. Justamente por isso, restabelece a possibilidade de enxergar beleza na vida — e na morte. Quando o fim chegar, que ele nos encontre com a dignidade e a inteireza de um coração como o dela.

Na reportagem, a médica Ana Claudia Quintana Arantes fala sobre cuidados paliativos

Na leitura de Cuidar Até o Fim, nos conectamos com histórias de pessoas que você apresenta só com uma inicial do nome. Ao mesmo tempo, vivemos uma situação geral muito afastada desse lugar de compaixão. Como está a sua esperança na nossa capacidade de conexão?

A gente está faminto! As pessoas estão famintas dessa experiência de conexão com alguém, algum propósito, algum futuro. Mas tem um momento da fome em que você não sente mais a fome, fica apático. A insatisfação pela falta de conexão pode ser um sinal de que é possível fazê-la. O problema é quando você está totalmente no espaço do “tanto faz”, não incomoda mais. As pessoas apáticas às conexões são zumbis existenciais, se tornaram desumanas. Se você é desumano, não vê a humanidade no outro, por isso há tanta violência. Quando leio uma história que tem uma inicial de um nome e me conecto, a vida dele transforma a minha. Tem gente falando assim: “Você escreveu o livro para mudar o mundo”. Não. Eu escrevi o livro para contar a história do que eu tinha vivido. Se o mundo muda a partir disso, é uma escolha do mundo, não minha.

Encarar a finitude demanda coragem. Estamos mais maduros em relação aos Cuidados Paliativos?

Temos, nesse momento, uma grande oportunidade de lidar com o fim. Todo mundo vai viver a morte: a sua ou de alguém que você ama. Se você não tem coragem de aprender o que pode fazer para isso ser menos sofrido, a vida vai te dar uma prova sem que você esteja preparado.

Ainda tem prova surpresa na escola? Aquela que a professora chegava do nada e falava: “Tirem uma folha do caderno e guardem os livros”? O adoecimento na nossa vida é uma prova surpresa. É a professora Vida falando: “Não pode colar”. Daí você não quis ler, estudar, sentar para conversar com a sua família sobre o que quer ou não quer, porque “Ah, Deus me livre falar sobre morte”. Está bom, não quer falar, não fala. Mas daí você adoece. Então o livro pede coragem, você tem razão. Mas quem é covarde também vai passar pela prova surpresa.

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Ana Claudia Quintana Arantes acaba de lançar um livro sobre cuidados paliativos

Você fala sobre a possibilidade de uma morte bonita — o que não quer dizer que ela vá ser simples, inclusive pela visceralidade da experiência. É um olhar de poeta junto com o olhar médico?

A gente só vê beleza naquilo que consegue enxergar. E tem belezas que não são óbvias. Viver é um exercício cotidiano de aprendizado. Quando criança, você sabia o tanto que sofreria na vida? Nos momentos mais difíceis, isso é péssimo, horroroso. Mas depois de atravessar, você olha para trás e fala: “Como a gente recebeu apoio dos amigos, como o médico cuidou direitinho, teve um técnico de enfermagem que sorriu”.

Você vai lembrar daquela experiência: alguém se importou em aliviar seu sofrimento. Para a gente ver beleza na morte, tem que entender que você está encontrando a sua morte, você está encontrando a morte da sua mãe. Por exemplo, sua mãe está doente e você só consegue visitá-la uma vez por mês, está sem dinheiro, não consegue folga, justificativas bem pertinentes.

E aí você passa 29 dias sofrendo, e no dia com ela sofre também, porque o próximo encontro só vai ser daqui 29 dias. Mas será que você é uma pessoa tão incrível que deixa no coração da tua mãe a vontade de viver mais um mês? Essa é a pergunta. Quando você a encontra, ela fala: “Que delícia, estava com tanta saudade!’.

Não tem pessoas que você ama tanto que quer ver de novo, não importa o tempo que demore? No olhar de fora, não é bonito uma filha ver uma mãe só uma vez por mês. Mas bonito é o que a sua mãe sente quando está junto, e isso não é da conta de quem assiste. Isso é a morte bonita. Não é poético, é a vida. Não é uma invenção, é a realidade. Só que a gente não consegue ver porque senta atrás da pilastra e perde a cena real.

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Como você enxerga a esfera da impermanência, que sempre pode tirar o nosso chão, e a esfera da presença, que pode tornar tudo válido?

O P., do Histórias Lindas de Morrer, traz esse aprendizado: toda coisa óbvia é surpreendente. Eu falo muitas coisas óbvias. A gente sabe o que é certo, o que é, de fato, o caminho que a gente tem que caminhar. P. fala que a gente vai viver os dias bons e os dias ruins pelo mesmo motivo: os dias ruins, eles vão passar. E os dias bons, também. Nenhum dia é tão ruim que dure mais do que 24 horas. E nenhum dia vai ser tão bom que precise de mais do que 24 horas.

Essa é, para mim, a verdadeira essência da impermanência: eu não vou sofrer tanto quando as coisas são difíceis, porque elas vão passar. E quando as coisas forem boas, eu vou prestar bastante atenção em estar presente, porque vai passar. A impermanência serve para isso: para a gente ter esse estado de presença sem tanta dor e nem tanto apego.

Na reportagem, a médica Ana Claudia Quintana Arantes fala sobre cuidados paliativos

E quem ler o livro e se arrepender, perceber que não cuidou até o fim como poderia? O que vem depois?

É preciso terminar essa história para começar a próxima. Sai desse buraquinho apertado, do “devia ter feito diferente” ou “deveria ter lido esse livro antes”. Você não fez. Você não fez porque naquela época você achava que não era capaz. E agora, que você é capaz, vai fazer o quê? Vai cuidar desse sentimento ruim e se perdoar? Se perdoar é transformar perdão em outro comportamento. Você cuidou mal? Então vá cuidar bem de alguém, alguém desconhecido, alguém que não é amado. Você transforma a sua culpa em algo que transforma o mundo para melhor. Senão, não serve.

É uma forma de ampliar a possibilidade de mudança para além da esfera íntima. Temos caminhado para essa transformação social, inclusive por ajuste de leis?

Demos passos importantes. Caminhamos e caminhamos, mas chegamos num abismo: a montanha que queremos fica do outro lado! Temos políticas públicas de Cuidados Paliativos. O caminho foi difícil, mas está lá, assinado, baita vitória! Só que chegamos num abismo. O abismo de 625 mil pessoas precisarem de cuidados paliativos todo ano e não terem.

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A maravilha está na montanha lá longe: todos os brasileiros vão ter acesso a Cuidados Paliativos pelo SUS. O que falta até lá são pessoas educadas para realizar esses cuidados. Tem que construir a ponte. Não adianta pegar e jogar uma corda: vamos pela corda bamba? Vai cair todo mundo. Você precisa construir a ponte, vai tempo, tem que planejar, calcular direitinho a profundidade… 0 abismo da ignorância humana não tem fim.

Sabe o que eu quero? Que daqui a 100 anos, um adolescente pegue esse livro e fale assim: “Vou ser médico, vou seguir o que essa mulher escreveu, vou fazer o que ela fez”. E eu não vou estar aqui pra receber o direct dele. Meus filhos também não vão estar aqui para ouvir: “Nossa, sua mãe era tão inspiradora”. Talvez eu não tenha netos, meus filhos não querem ter filhos. Vai estar extinta a existência de Ana Claudia. Mas daí alguém vai sonhar em cuidar de alguém do jeito que está explicado lá no livro como é que faz. Esses são meus planos para o futuro.

Quem é Ana Claudia Quintana Arantes?

Ana Claudia Quintana Arantes acaba de lançar um livro sobre cuidados paliativos

Médica formada pela USP, Ana Claudia Quintana Arantes (@anaclauquintanaarantes) fez residência em Geriatria e Gerontologia no Hospital das Clínicas. Tem pós-graduação em Psicologia — Intervenções em Luto pelo Instituto 4 Estações e especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford.

É sócia-fundadora da Associação Casa do Cuidar — Prática e Ensino em Cuidados Paliativos, onde coordena cursos de formação. Oferece cursos online e atendimentos em acqa.com.br. Pela Editora Sextante, seu lançamento mais recente é Cuidar Até o Fim — Como Trazer Paz Para a Morte (R$ 49,90).

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Cuidar até o fim: Como trazer paz para a morte

Livro da escritora Ana Claudia Quintana Arantes fala sobre a morte sem tabu

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