SP: mulher de policial morto engasgado denuncia abusos em cursos da PM

São Paulo — “É um show de horror”, disse a mulher de Alan Roberto de Freitas Silva, cabo da Polícia Militar (PM) que morreu em 21 de novembro — 33 dias após engasgar com um pedaço de frango — sobre o curso que o marido fazia pela corporação. Sarah Paschoarelli revelou ao Metrópoles situações degradantes enfrentadas pelos policiais.

“É um curso, assim, que te coloca ao extremo ali, na exaustão. Te deixa horas sem comer, exercício físico extremo, enfim, tudo ao extremo”, disse a assistente de departamento pessoal.

Sarah conta que, quando começou a namorar com Alan, há oito anos, ele deixou claro que não contaria tudo sobre o dia a dia no trabalho. Apesar disso, o cabo comentava que a rotina era “puxada”.

“Ele fazia alguns tipos de comentários que, pelo jeito que ele falava, a gente [família] já entendia assim: ‘nossa, então é pesado’.”

Quando engasgou, Alan estava fazendo um curso de especialização da Força Tática, diz Sarah. Segundo ela, até mesmo durante as refeições, os policiais continuavam em treinamento.

“O que a polícia quer passar é que todo mundo sentou na mesa bonitinho, foi sentar, fizeram a oração da alimentação ali antes, sentaram para comer e por acaso ele engasgou. Mas esse tipo de treinamento não é assim”, disse.

Ela conta que, durante a refeição, ocorre uma dinâmica, onde todos sentam em círculo. A comida, segundo ela, é jogada no chão, e os policiais têm um minuto para comer. Sarah alega que o marido comeu tão rápido que não mastigou. Alan morreu pois o pedaço de frango rompeu seu esôfago.

“Tem humilhações [no curso]. No caso dele, ele já é policial militar, ele já é da Força Tática. Então, não precisa de nenhum tipo de humilhação. Ele já provou que é capaz. Então, era um curso que, teoricamente, ele deveria estar lá pra aprender algumas coisas específicas. Mas é um show de horror”, denunciou.

Sarah relata que os policiais são submetidos a inúmeros tipos de humilhações psicológicas e físicas. “É imbecil. É um tipo de curso imbecil”, falou a mulher.

O que aconteceu

Alan se tornou cabo da PM em setembro deste ano. Ele morava em Franca (SP) e estava em Ribeirão Preto (SP) para o curso da Força Tática. A formação começou no dia 14 de outubro e, no dia 18, o policial se engasgou com um pedaço de frango.

“A gente ainda não sabe como foi, mas o que me passaram, quem estava com ele, é que ele engasgou ali, passou mal. Ele não chegou a desmaiar, não chegou a ter falta de ar, mas ficou com aquele incômodo de comida entalada. E os próprios (policiais) que estavam ali comentaram que ele mesmo tentou tomar um suco, tentou vomitar. Fizeram manobra de desengasgo nele. Mas como ele não melhorou, foi pro UPA [Unidade de Pronto Atendimento]”, relatou Sarah.

Sem melhora, Alan foi transferido para o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto no mesmo dia. Segundo a mulher, ele chegou no hospital já em estado grave.

No sábado, 18 de outubro, passou por uma endoscopia pela manhã que identificou uma fissura no esôfago. À tarde, uma tomografia mostrou o rompimento do órgão. Após o exame, o cabo foi encaminhado para uma cirurgia de emergência.

Antes de ser sedado, Alan conversou com a esposa. Esta foi a última conversa dos dois. “Amor, tá tudo bem, daqui dois, três dias eu vou pra casa, não [se] preocupa”, teria dito.

Segundo Sarah, Alan não teve noção da gravidade de tudo que aconteceu. “Não deu tempo de contar pra ele”, relembrou.

Ela conta que foi com o marido até a porta do centro cirúrgico. Lá a mulher pediu para que ele voltasse logo para casa, o que ele disse que faria. “Daqui a pouco eu volto.”

O cabo passou 33 dias internado antes de falecer, a maior parte do tempo sedado. Segundo Sarah, ele chegou a acordar, “mas ele não teve lucidez”.

A causa da morte do policial militar foi choque séptico refratário, mediastinite e síndrome de boerhaave, que é a ruptura do esôfago. O órgão rompeu, segundo Sarah, devido à pressão que sofreu – pelo vômito, que chegou a expelir sangue, e tentativa de desengasgo.

Suposta doença pré-existente

De acordo com a mulher, a polícia alega que Alan tinha uma doença pré-existente. No entanto, além de fazer exames médicos anuais, o cabo passou por um check-up antes do curso, que não apontou nenhum problema de saúde. “Ele não poderia participar do curso tendo um problema pré-existente”, disse Sarah.

Ela conta que o capitão do Comando de Policiamento do Interior 3 (CPI-3), Thacio de Oliveira Pedroso, chegou a ir até o hospital durante a internação de Alan questionar o cirurgião que operou o cabo se o policial não tinha mesmo algum problema de saúde.

“O próprio médico falou que independentemente se ele tivesse algum problema, o que causou isso nele foi essa pressão no esôfago, foi a força e tudo mais. O próprio médico já descartou essa possibilidade.”

Apoio da corporação

Sarah conta que amigos de Alan, policiais militares, chegaram a arrecadar dinheiro para a mulher custear a estadia em Ribeirão Preto durante a internação do marido. A corporação, no entanto, não ofereceu qualquer suporte, segundo a viúva.

A preocupação da instituição, de acordo com ela, era saber se Alan havia acordado. “Por que eles queriam saber se ele acordou? Para saber se ele estava falando alguma coisa? O que ele poderia falar?”, indagou.

“Eu não tive ajuda de Capitão, não tive ajuda de Comandante, não tive ajuda da instituição. Eu tive ajuda de pessoas que gostam muito dele, que têm consideração por ele. E naquele momento que a gente estava ali sozinho, desamparado, eles nos abraçaram e nos ofereceram ajuda”, contou ao Metrópoles.

Luto

Sarah conta que o casal “tinha uma vida inteira de planos”. Segundo ela, Alan ia estudar para se tornar sargento, e o casal pretendia se mudar. “Acabou tudo. Tudo que eu tinha, eu perdi”, disse a mulher.

Para a viúva, a morte do marido é injusta. “O Alan nunca fez mal para ninguém. Ele sempre ajudou as pessoas. Muita gente chegou elogiando, falando o quanto ele ajudou. Então ele é um cara incrível. Um marido maravilhoso. Um filho maravilhoso. Tiraram ele da gente e… Desculpa a palavra, e foda-se”, desabafou.

A mulher destacou ainda que tanto o secretário da Segurança Pública, Guilherme Derrite, e o governador do estado, Tarcísio de Freitas (União Brasil), não se manifestaram sobre o ocorrido.

O que diz a SSP

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP) informou, por meio de nota, que a Polícia Militar lamenta a morte do cabo Alan Freitas e se solidariza com sua família.

“Uma sindicância foi aberta para apurar o caso. Os treinamentos são feitos segundo os mais absolutos critérios de segurança para todos os agentes e a corporação está à disposição dos familiares para qualquer informação”, disse a pasta.

Alan foi velado no último sábado (23/11). De acordo com Sarah, policiais da Força Tática estiveram presentes e fizeram homenagens ao cabo. “Foi uma cena, assim, muito bonita, de ver quantas pessoas ele cativou, ele fez amizade, quantas pessoas gostam dele”, disse.

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