Livro “Ainda Estou Aqui” se torna best-seller no país

Livro “Ainda Estou Aqui” se torna best-seller no paísHumberto Maruchel

O livro Ainda Estou Aqui (Alfaguara), de Marcelo Rubens Paiva, que inspirou o filme de Walter Salles, alcançou o primeiro lugar em vendas na Amazon, na categoria “Biografias de Líderes e Pessoas Notáveis”. O desempenho reflete o sucesso do longa, lançado no início do mês nos cinemas e com sessões lotadas desde então — só na primeira semana a produção arrecadou mais de 8 milhões de reais.

Publicada em 2015, a obra retrata a trajetória de Eunice Paiva, esposa do deputado Rubens Paiva, desaparecido e morto durante a ditadura militar. Eunice esteve ao lado do marido durante o exílio em 1964 e, após sua prisão em 1971, enfrentou sozinha a criação de cinco filhos, Marcelo Rubens Paiva era um deles.

Superando adversidades, Eunice retomou os estudos, tornou-se advogada e destacou-se como defensora dos direitos indígenas, mantendo-se resiliente e firme em sua luta, mesmo diante da tragédia. O autor revisita essas memórias, abordando também os desafios de Eunice com o Alzheimer e refletindo sobre o impacto da repressão política e do desaparecimento do pai.

No filme, Fernanda Torres interpreta Eunice Paiva, recebendo aclamação por sua atuação, com rumores de uma possível indicação ao Oscar de Melhor Atriz. Selton Mello dá vida a Rubens Paiva, entregando uma performance emotiva e comovente. O longa de Walter Salles também tem sido considerado para uma indicação na categoria de Melhor Filme Internacional.

Leia o primeiro capítulo do livro Ainda Estou Aqui:

Onde é aqui?

Não nos lembramos das primeiras imagens e feitos da vida: do leite do peito, das grades do berço, do móbile que se mexe sozinho magicamente, de nos virar, não conseguir desvirar e chorar até alguém acudir, de como jogar as perninhas pro lado, nos virar e desvirar sozinhos, o primeiro movimento que revela um domínio corporal relevante da vida, do qual nos orgulhamos imensamente, como nos erguer no berço, na cama dos pais, no chão, da primeira vez que ficamos em pé, apoiados na parede, o segundo movimento de domínio corporal do qual nos orgulhamos imensamente, de jogar brinquedos para fora do berço, de quem são papá e mamã, de apertar bonecos que dizem “você é meu amigo”, “coraaaação”, “quem tá feliz bata palmas”, de que chorar é recompensador, do fascinante interruptor que acende e apaga a luz, do mundo dos vários botões ao redor, do mundo em que passam aviões no céu, e há tomadas, o papel rasga, a impressora cospe papel, a gaveta abre e fecha, abre e fecha, e há gavetas por todos os lados, de ligar a TV, de chamar o elevador, das teclas do telefone e computador e controle remoto, do primeiro contato com o magnífico celular, que toca música, e de uma queda livre sem apoio que com o tempo se transforma em caminhar e é aprimorada, um movimento que todo mundo incentiva e adora e bate palmas pra ele. Nos lembramos disso diariamente, ao sair do berço, de ir atrás do celular, do controle, de tentar caminhar, de rasgar papel, de abrir e fechar gavetas, abrir e fechar, do botão do boneco que nos chama de amigo, dos domínios corporais que se aprimoram com o tempo, dos interruptores de luz, do que pode e daquilo que “não!”, não pode, dizem bravos, de quem é papá, mamã, vovó, titia, de que, quando nos levam ao berço e apagam a luz, temos medo de tudo isso sumir e nunca mais voltar: por isso choramos até cansar.

Já temos memória desde o primeiro dia em que nos deram à luz! Temos lembranças assim que acordamos, lembramos que o mundo é magnífico, sentimos um vazio no estômago, uma fralda pesada, molhada, e lembramos que, se chorarmos, milagrosamente aparece alguém que nos livra do desconforto.

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Somos um pi-to-qui-nho de gente pe-ti-ti-ti-ca e temos memória, referências, jogamos com elas, calcula-mos nossas ações nos apoiando em lembranças (já) solidificadas. No entanto, não nos lembraremos de nada disso anos depois. Não nos lembramos de nada disso, mas nos lembramos do triciclo que ganhamos aos três ou quatro anos, da pré-escola, de uma festa de aniversário em que foram todos os amigos, de alguns brinquedos, babás, casas em que moramos, corredores, quartos, castigos, brigas, escolas, tias-professoras, coleguinhas. As primeiras lembranças que guardamos para o resto da vida são as de quando temos três ou quatro anos, e a cada ano que passa virão mais lembranças que serão guardadas, cinco, seis, sete, que se tornam as primeiras lembranças mais fortes do que o esquecimento, que serão cobertas por novas experiências, que se acumulam, se acumulam, se acumulam, oito, nove, dez…

Meu filho não vai se lembrar de quando tinha um aninho e fazia questão de mostrar o umbigo a todos que viessem falar com ele. Só sossegava se também mostrássemos o nosso. Não vai se lembrar dos umbigos gordos, peludos, lisos, engraçados, femininos, enormes, branquelos, tortos, achatados, moles, tímidos, exuberantes, belíssimos que viu. Não vai se lembrar dos tios, tias, amigos e amigas dos pais, desconhecidos e desconhecidas, que levantaram a camisa para ele, fazendo uma cara engraçada, sorrindo um sorriso que ele costumava checar se tinha a ver com o umbigo, pois olhava o umbigo alheio, o rosto do seu dono e voltava ao umbigo. Nem vai se lembrar de que girava na sala como uma barata tonta, caía, levantava e girava; só dias depois descobrimos que estava jogando capoeira sozinho na sala, que aprendeu na escolinha.

Mas saberá do seu fascínio infantil por esse buraco de nome engraçado no meio do corpo que todos têm, depressão na pele resultado da queda do cordão umbilical, a primeira cicatriz fisiológica que ganhamos. Saberá disso porque contaremos, porque nas primeiras fotos das primeiras festas do primeiro ano do grupo G1 da sua primeira escola, as crianças em torno de uma mesinha aparecem sorrindo ou chorosas, olhando ou não para a câmera, e ele aparece de camisa levantada apontando o seu umbigo fenomenal. E se perguntará se existe uma fase em que a comunicação com o mundo se passa pelo umbigo, e se as primeiras lembranças entram por ele.

O renascimento de um fato psicológico passado, seu reconhecimento e localização são as condições necessárias das lembranças. Ou da memória. Elimine um deles, não será lembrança, mas reminiscência. Você olha uma pessoa na rua, pensa reconhecê-la, imagina que já a viu antes, mas não sabe dizer quando nem onde. Há o retorno de um fato passado e o reconhecimento, mas falta a localização: não há lembrança. Henri Bergson escreveu sobre isso. Um teste clínico simples para detectar a falta de memória, como em pacientes com Alzheimer, é perguntar onde e em que ano estamos.

30 de janeiro de 2008. Saímos da estação Liberdade. Fazia sol, mas me lembro do cheiro de que ia chover. Talvez todo paulistano detecte com precisão o cheiro da chuva a caminho. Sente no ar que o mundo pode desabar e tudo vai mudar. Sabe que, se chove, segue-se o caos. E que, por mais que tentemos, a natureza ainda é quem comanda a rotina do maior núcleo urbano da América do Sul.

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São Paulo é das raras cidades que têm postes com placas que indicam área sujeita a enchentes, letras em vermelho sobre um fundo azul com duas grandes nuvens com gotas enormes, placa que não está no Código de Trânsito Brasileiro. Como se adiantassem ao motorista que desce a rua Diana, em Perdizes, onde está a placa, na esquina com a rua Turiassu — em algumas placas, Turiaçu —, que no caso de tempestade a rua em frente se torna um rio caudaloso, e que a enchente desce a rua com uma correnteza forte no mesmo sentido dos carros, não na contramão, como se também obedecesse às placas de trânsito, e que alaga todos os verões.

A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida. Uma memória não se acumula sobre outra, mas ao lado. A memória recente não é resgatada antes da milésima. Elas se embaralham. Minha mãe, com Alzheimer, não se lembra do que comeu no café da manhã. Minha mãe, com Alzheimer, vê meu filho de um ano, que é a minha cara, e o reconhece. Não acha que sou eu, mas o chama de filhinho, de meu filhinho. E sempre diz:

— É a coisa mais linda.

E às vezes se confunde e diz:

— Ela é a coisinha mais linda.

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Pode ser ela, a criança. Pode ser que, por ter tido quatro filhas, todos os bebês se tornem ela. Minha mãe reclama muito quando o levamos embora.

Centro velho de São Paulo. Saímos da estação Liberdade. Minha mãe, minha irmã Veroca e eu. Cruzamos o largo Sete de Setembro. Me lembro do cheiro de que ia chover e do agito em torno do fórum. Ela já tinha feito aquele caminho centenas de vezes. Mas, se a soltássemos ali, sozinha, naquela tarde abafada, ela estancaria e não saberia o caminho de volta. Se perderia num raciocínio circular, sob uma enchente de imagens, sinapses, comandos, lembranças, que inundariam seu cérebro, fariam do conhecido, desconhecido, resultariam numa só pergunta:

— O que estou fazendo aqui? Ou melhor:

— O que é mesmo que vim fazer aqui? E talvez:

— Onde é aqui?

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Como não encontraria a resposta, já que a tempestade cerebral impediria a clareza dos pensamentos, ela diria a frase que marcou a parte inicial do Alzheimer:

— Quero ir embora. Ou:

— Quero ir pra casa.

Às vezes sorridente. Às vezes furiosa. Sempre surpreendente.

Entramos no Fórum João Mendes. Ela olhava para o lugar com familiaridade e sorria. Estava curtindo o passeio. Esperamos nas filas dos elevadores. Sobre eles, placas indicam os andares em que cada um para. Um entra e sai numeroso de advogados, estagiários, réus, testemunhas, queixosos, policiais, prisioneiros, assistentes, vítimas e casais se separando.

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Turiaçu é um rio no Maranhão. A origem do nome vem de “tury” = “facho” + “assu” = “grande”. Facho grande, grande luz, grande fogueira. Uma fogueira num lugar elevado e vista de longe servia à pesca do camarão no mar. Em noites escuras, mostrava aos que se demoravam, mais afastados da costa, o ponto do regresso. Guiava os perdidos. Turyassu: a grande fogueira, o farol que iluminava o caminho de volta para casa, para a aldeia, para as famílias.

Bateram no meu carro numa paralela à Turiaçu, num dia claro, e fui processado naquele fórum. Minha mãe foi a minha advogada. O sujeito, mesmo culpado, me pediu uma grana. Minha mãe aceitou a conciliação. O cara pedia cinco vezes mais do que o conserto. Apresentou orçamentos falsos. Fiquei decepcionado com ela, pois não lutou até o fim, não fez a justiça prevalecer; eu era inocente. Ele bateu no meu carro e agora tá dizendo que eu bati!

— Meu filho, faz um acordo, não vale a pena ficar brigando…

Não foi feita a justiça. Paguei o conserto do cara. Descemos no elevador com o pilantra e o advogado oportunista dele. Descemos num respeitoso silêncio. E cada parte foi pro seu lado sem se despedir. Eu deveria ter esganado os dois, ele e o advogado. Fomos caminhando para a estação Liberdade. Ouvi outras vezes, derrotado:

— Meu filho, faz um acordo, não vale a pena ficar brigando…

Me separei naquele mesmo fórum, anos depois. Era para minha mãe ser a minha advogada, como tinha sido a vida toda, advogada para tudo: batida de carro, contratos, desentendimentos trabalhistas, problemas com a Receita. Foi minha revisora e contadora, além de advogada de todos os cinco filhos e de uma dezena de primos, amigos e até de amigos de primos e pais de amigos. Divorciou casais amigos, inventariou bens de famílias amigas, foi advogada de fábrica, de empresas e de índios, foi advogada do divórcio do Ronnie Von, que causava furor quando aparecia no escritório:

— Meu bem…

Uma das poucas especialistas em direito indígena, foi advogada da fundação do Gilberto Gil, foi advogada no Brasil do Sting, que doava grana para os caiapós, ele ligava para ela em casa, com um sotaque inglês inconfundível:

— Eunice Paiva, porrr favorrr.

— Mãe! Stingui de novo no telefone! Fala rápido, que estou esperando uma ligação!

Foi advogada de ilustres e desconhecidos, foi consultora do governo federal, do Banco Mundial, da ONU. Para onde foi todo esse conhecimento? Está à deriva na sua memória, pra lá e pra cá no mar de ligações químicas, de onde não se enxerga o facho grande da costa, a grande fogueira, para retornar à terra, ao ponto de partida. Como Major Tom, o astronauta de David Bowie que empacou flutuando no espaço num jeito peculiar, ao redor da Terra.

Ground Control to Major Tom. Your circuit’s dead, there’s something wrong.

Can you hear me, Major Tom? Can you hear me, Major Tom?

Major Tom, às escuras, num voo às cegas, na porta da sua nave, que parece uma lata fina. Planet Earth is blue, and there’s nothing I can do. Me pergunto se esse é um pensamento conformista, de quem não acredita em ações transformadoras ou nas possibilidades de o homem, um ser político, fazer a história, em atitudes que um dia chamou de revolução, ou se, em certos casos, a Terra é azul, é muito maior do que nossa insignificância, e não há nada que se possa fazer.

Descemos na 5a Vara da Família do João Mendes, onde encontramos nossas duas advogadas, advogadas que minha mãe escolheu, com quem se reuniu num escritório na avenida Paulista para, ainda lúcida, dar dicas de como elas deveriam agir. Esperamos no corredor.

Prisioneiros algemados ficam de costas, os rostos grudados à parede, e sempre escoltados. Em muitos bancos, réus, testemunhas e queixosos estão incomodados com o mesmo calor, com a ciência de que vai chover, de que sairemos daquele prédio e o caos terá desabado sobre a cidade. Todos quase em silêncio, silêncio respeitoso, sim, doutor, não, doutor. Eu já disse isso?

O curioso é que, dentro das varas, quebra-se o maior pau. Mas fora, nos corredores, no hall, nos elevadores, pouco se fala. Quando se fala, é aos sussurros.

Em nenhum momento ela perguntou o que estávamos fazendo, nem pediu para ir embora. Naquela fase, “passear”, ver coisas e pessoas, podia deixá-la feliz. E talvez ali se sentisse confortável. Restavam em sua memória os tantos momentos em que esperou naqueles bancos. Minha mãe devia se sentir em casa, por isso não se queixara. Ainda havia algum senso de presente, logo de memória. Ainda. E talvez não tenhamos uma só memória.

Diante de cada vara, uma mesinha com uma ou um secretário. Quando nos chamaram, olhei para ela. Vamos? É a nossa vez. Ela olhou para a Veroca. Confiava nos dois, não apenas em mim. Confiava na filha mais velha e no único filho homem. Não confiava cegamente, nunca confiou em ninguém cegamente. Era advogada. Checava cada decisão que tomávamos, para ver se fazíamos o certo. Sabia que estávamos nós dois agora no comando. E, se assinasse algum documento, mesmo com Alzheimer, checava cinco vezes. Se não concordasse, não assinava. Checava cada decisão que as advogadas tomavam, para ver se estavam fazendo o certo. Sabia como seria o seu futuro. Sabia que a demência era um caso não só para a medicina, mas também para o judiciário. Sabia que havia leis que a protegiam e preservavam o bem (e os bens) familiar(es). Acreditava na Justiça. Orgulhava-se de fazer parte daquele meio. Me dizia sempre:

— Ela existe para defender os mais fracos. Chamaram seu nome. Obedeceu, resignada. Entramos na sala. O juiz de família numa mesa sobre um praticável. Nos sentamos nos locais indicados pela escrivã. Um retrato enorme e mal pintado de um soldado fardado era a única reprodução pendurada na parede, diante do juiz. Comentei, para quebrar o gelo, que era impossível alguém lutar com aquele uniforme ridículo, sem contar o pesado capacete. Ele me interrompeu, disse que era seu pai, que tinha sido policial da Força Pública, antiga Polícia Militar, um exemplo de caráter. E que aquele era o uniforme de gala. Eu não podia voltar no tempo. O juiz leu por alto o processo, pulou parágrafos, olhou para todos. Encarou a minha mãe.

— Vi que temos aqui uma colega bacharel.

— Sim, sou advogada. Aposentada.

— A senhora sabe por que está aqui?

— Porque estou velha e preciso que cuidem de mim — respondeu com a sua marca: sinceridade e lógica. Estávamos no Fórum João Mendes, na 5ª Vara da Família, porque ela estava velha. Essa era a grande ironia. Especialista em interditar pais dos amigos, tida como advogada de confiança, estava para ser interditada às 14h35. Tinha setenta e sete anos. Nem tão velha assim. Interditou dramaticamente velhos conhecidos. Sabia, passo a passo, como fazê-lo.

O juiz tinha à sua frente atestados de dois médicos especialistas, um deles professor da USP, exames clínicos, imagens do cérebro com as detectáveis manchas brancas que indicam a doença, procurações dos cinco filhos pedindo a interdição. Esperávamos que, como de praxe, fosse constituir um perito judicial de sua confiança para tirar os direitos civis de uma bacharel. Tratou o caso com objetividade, frieza e respeito; afinal, estava diante de uma colega. Não falou em juridicês. Rotina. Quantos casos semelhantes não julgou naquela semana? Quantas vezes não leu os autos do processo e viu as mesmas palavras, termos, pedidos?

Virou-se para a minha mãe e perguntou de surpresa:

— Em que ano estamos?

Ela me olhou em desespero. Era aquela expressão, a nova expressão, adquirida havia poucos anos, como se tentasse lembrar algo banal e não conseguisse, a data!, que dia é hoje!, data!, dia/mês/ano!, humilhada pelas conexões do cérebro, proteínas que faltavam a cada dia, mais e mais, eles querem a data!, o que a deixava num branco incomum, onde está o facho? Olhou para nós como se estivesse sendo arrastada pela correnteza para o vazio do oceano, iria se afogar, afogar-se no esquecimento. Assustada, surpresa por não se lembrar, coisa simples. Era um exercício sobre-humano remar de volta. Tinha que adivinhar a direção, defender-se e responder em que ano estávamos. Não sabia. Não sabia em que ano estávamos, em que mês estávamos, em que dia. O tempo não fazia muito sentido. Não conseguiria dizer com certeza o que tinha comido no café da manhã. Por mais que tentasse, não acertaria a primeira pergunta. Um a zero para a doença. O juiz emendou outra:

— Como é o nome do presidente do Brasil? Novamente, o olhar, desespero, vergonha, branco, deu branco, ela sofria demais, sofria sempre quando não reconhecia alguém e a pessoa perguntava, “Se lembra de mim?”, era desesperador não se lembrar se já se banhara, esquecer os remédios, a panela acesa no fogão, não ver a fogueira no alto do morro para voltar à costa com o barco cheio de camarão, a pesca realizada, a missão cumprida.

O presidente do Brasil, mãe, você o conhece pessoalmente. Ele já foi em casa duas vezes, quando ainda era líder sindical. Você esteve na fundação do partido dele. Esteve ao seu lado na luta pela Anistia, pelas Diretas, pela redemocratização. Até queriam você como suplente de senador do partido dele. Ele foi em casa numa noite em que tudo estava uma bagunça. Eu jogava War na sala com amigos. Tínhamos fumado maconha. Ríamos alto. Você, no quarto. A Veroca o trouxe com o Geraldinho. Ele entrou, e gargalhamos, pois estávamos bem chapados. Ele nos cumprimentou, riu também, deve ter sentido o cheiro da rua. Claro que não oferecemos. Ele entrou e foi conversar com você sobre os rumos da política brasileira, que se reorganizava, saía da ditadura. Ficamos nos perguntando se deveríamos ou não oferecer maconha ao metalúrgico líder sindical. Melhor não. Naquela época, eu fumava maconha em casa com os amigos. No quarto, na varanda, nunca na sua frente. Depois de você ter descoberto que eu fumava, depois de ter descoberto que meus amigos fumavam, depois de ter descoberto que seus amigos, e amigos que fez já viúva, fumavam, depois de seus amigos que fumavam terem lhe oferecido, e de você não recusar, por educação, por timidez, e ter dado uns pegas, curiosa… e não ter sentido nada, você viu que não era coisa do demônio. Liberou.

A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa.

O juiz esperava a resposta. Veroca, como se falasse com uma criança, ainda tentou:

— Mamãe, você conhece ele, é o Lu…

Nada. Silêncio. Ela me olhou. Nada. Tudo bem, mãe. Tudo bem, é normal esquecer, você está velha, acontece, todos nós esquecemos, não precisa ficar desesperada nem se sentir culpada, estamos aqui pra te ajudar, todos nós também vamos envelhecer, lembra da sua sogra, a vovó?, também ficou assim, ficou gagá, sua mãe também envelheceu, ficou velhinha, lembra dos amigos dos seus amigos, que você interditou?, também ficaram assim, envelhecer faz parte, se esquecer é normal, eu também me esquecerei no futuro, eu, a Veroca, as advogadas, esse juiz, o pai dele, nesse uniforme ridículo, deve ser hoje um velho que se esquece, não sofra, todos esquecemos, esquecer faz parte, é normal, envelhecer é normal, faz parte, vai dar tudo certo, a Justiça te protegerá, você confia na Justiça, nós cuidaremos de você, fique tranquila…

O juiz perguntou, pois queria saber se tínhamos uma causa, se abria o processo. Sim, a bacharel estava incapaz. Sofria de alguma demência. Era a doença que a impedia de se lembrar. Podia ser Alzheimer. Podia ser hormonal ou outra demência. Hoje existem demências identificadas, nomeadas, diferentes umas das outras. A população envelhece. O cérebro da população envelhece. Um perito escolhido pelo juiz faria a avaliação final. Mas era preciso fazer a interdição temporária.

— Estamos aqui porque seus filhos pedem a sua interdição judicial e elegem seu filho, Marcelo, como curador. A senhora está ciente disso?

— É porque estou velha e preciso que cuidem de mim.

Ela não disse seu prognóstico. Tentava, a todo custo, ser tratada não como uma doente, uma demente, mas como um ser igual a todo mundo, que, com a idade, é traído pela memória, fica velho, fica esquecido, fica esclerosado, velhinha.

— Ela pode também ser minha curadora? — perguntou, se referindo a Veroca.

— Não, apenas um.

— Mas ela pode cuidar de mim?

— Claro, mamãe, sempre cuidarei de você — Veroca disse.

E era quem cuidava. Já havia se estabelecido ali uma parceria de amor e confiança. Me perguntei por que eu, e não ela, minha irmã mais velha, estava sendo eleito curador. Porque sou homem. O único homem da casa. Ela me escolheu. Depois de tudo o que fez por mim, por toda a minha vida, eu deveria retribuir.

Passou a falar das duas filhas que moram fora, uma na Suíça, outra em Paris, dos netos que moram na França, que queria pagar para eles virem vê-la todos os anos, já que ela não conseguia mais viajar, insistiu que deveríamos sem-pre mantê-la próxima dos netos, que ela tinha dinheiro para isso. O juiz concordou. Ela insistiu. Falou de novo que tinha duas filhas que moravam fora, uma na Suíça, outra na França, e três netos em Paris, que precisava que eles viessem todos os anos, que ela pagava se não tivessem dinheiro, pois ela ia todos os anos vê-los, mas agora estava velha, não conseguia viajar, se perdia em aeroportos, se perdia na rua em busca de um táxi, não conseguia comprar passagens pela internet, não conseguia comprar nada pela internet, não conseguia usar a internet, apesar das tardes em que passei ensinando-a, irritava-se com o mouse, não entendia direito o mouse, o cursor sumia e reaparecia, queria mesmo comprar passagens na loja da Varig, que ficava na Paulista, mas a agência tinha fechado, a companhia estava falindo, a Vasp também tinha falido, a companhia com a qual viajava rotineiramente atrás da promoção (guarde nove cartões de embarque e ganhe uma viagem grátis). Faliram. A Transbrasil também faliu, tudo mudava rápido demais, os bancos se automatizavam, suas notificações da Justiça vinham agora por e-mail, não mais em carta em papel-jornal grampeado da AASP, Associação dos Advogados de São Paulo, e ela não conseguia se entender com o “maledetto” do mouse! Ma-le-det-to!

Repetir é um dos gestos rotineiros de quem tem demência. Não sei se é porque a pessoa se esqueceu do que disse ou para reafirmar o que disse, já que alguns não prestam atenção. Essa repetição, aliás, é um alerta: é quando a família recebe os primeiros sinais de que os pensamentos de quem repete não seguem uma rota contínua. O juiz foi surpreendentemente atencioso e ouviu a segunda vez como se fosse a primeira, que ela tinha filhas e netos no exterior e que queria pagar para eles virem vê-la todos os anos. Claro, pode deixar, vamos cuidar disso, ele respondeu.

O juiz me olhou seriamente. Anunciou que, a partir daquele instante, eu seria responsável jurídica e criminalmente pela minha mãe.

— A partir desta data, o senhor é responsável jurídica e criminalmente pela sua mãe.

Exigiu que eu me desdobrasse pelo conforto e bem-estar dela. Determinou que ela não poderia mais ficar sozinha. Precisaríamos de cuidadoras vinte e quatro horas por dia, sete dias da semana, trezentos e sessenta e cinco dias do ano. E lembrou que eu tinha a obrigação de trazer as filhas e os netos que moram fora.

Desde então, minha mãe nunca mais ficaria sozinha. O jogo tinha se invertido naquele instante.

Em 30 de janeiro de 2008, naquela tarde abafada, na forma da lei no Foro Central Cível na praça João Mendes, s/no, 4o andar, sala 426 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, primeiro provisoriamente e depois definitivamente, aquela que cuidou de mim por quarenta e oito anos seria cuidada por mim. O referido é verdade e dou fé.

Eu virava mãe da minha mãe.

E não choveu.

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“Ainda estou aqui” de Marcelo Rubens PaivaEditora Alfaguara/divulgação
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