Drill, baby, drill (por Mary Zaidan) 

A maior parte do mundo está apreensiva, a direita e seu braço extremo comemoram, a esquerda (radical ou nem tanto) e o que restou da social-democracia catam os cacos e ensaiam, ainda sem êxito, entender os motivos da derrota. Um roteiro nada incomum em eleições majoritárias não fosse Donald Trump o protagonista – um heroi às avessas, cuja vitória joga no lixo valores civilizatórios cultivados há séculos com luta, suor e vidas.

Muito já se falou sobre o quanto o retorno de Trump à Casa Branca impactará a democracia como a entendemos. Do quão caótica são suas formas de governar, de sua aversão a sociedades coletivas, ao globalismo e às emergências climáticas; de sua misoginia e ódio racial. Mas o divisor de águas mais grave dentro desse cenário já tão aflitivo talvez seja a ruptura da crença de que o certo é fazer o bem, respeitar o outro, honrar a verdade.

Como ensinar uma criança ou um jovem que mentir é errado se o maior mentiroso do século é reconduzido pelo voto da maioria para ocupar o cargo mais importante do planeta? Como condenar o cinismo? Como mostrar que o porto-riquenho ou brasileiro ilegal não existe apenas para limpar a privada? Como querer que este mesmo jovem respeite um colega de outro estrato social, etnia ou religião? Ou que trate as mulheres de igual para igual, e não as use como diversão sexual? Como dizer a ele que é legal ser legal com as pessoas, compreensivo, generoso?

Trump não é o primeiro nem o único a vencer a partir da destruição desses valores. Líderes de direita e de esquerda o fizeram com galhardia no século passado. Isso vale de Hitler a Stalin, de Mussolini a Franco, de Fidel a Salazar. Todos pela força.

A “novidade” tática dos autocratas foi a utilização dos instrumentos da democracia para alcançar e manter o poder, movimento que começou antes dos anos 2000 e atravessa o século com vigor total. À esquerda e à direita: Putin, Erdogan, Chávez (depois Maduro), Orbán, Ortega, Milei, Bolsonaro…

Trump seria apenas mais um que abusa do voto para chegar lá não fosse o vencedor nos Estados Unidos, país luminar da democracia, que perde esta chama com o retorno dele à Casa Branca.

Pela lógica, ninguém que duvida da democracia poderia se beneficiar dela. Trump, que semanas antes do pleito dizia que a fraude estava correndo solta, foi eleito e não deu mais um pio sobre o tema. Mas continua negando que perdeu para as fraudes dos democratas em 2020. À época, chegou a pressionar a autoridade eleitoral da Geórgia para “achar” uns votos para ele, e, diante da irreversibilidade dos resultados, incitou sua trupe para invadir o Capitólio e impedir a certificação de Joe Biden. Descartou a democracia ali e só a reabilitou para tirar vantagens dela.

Levar vantagem em tudo é prática recorrente de Trump, o que nos conduz mais uma vez à destruição de valores. Chega a ser quase infantil lembrar que no final dos anos 1970 o Brasil condenou  – hoje se diria “lacrou” – o craque Gérson por dizer em um comercial de cigarros que gostava de “levar vantagem em tudo”. Pelas leis de Trump, imitadas por orbáns e bolsonaros mundo afora, só vence quem segue a “lei do Gérson”.

Não há dúvida de que é bem mais fácil pregar mentiras do que falar a verdade, chocar com declarações absurdas, agressivas, sem pé nem cabeça, negar fatos quando eles são contra você e jamais admitir culpa por coisa alguma, mesmo quando o crime está ali, estampado na sua cara. Trump é assim desde jovem. Fez fortuna assim, chegou e vai voltar à cadeira número um do mundo assim.

Democracia é um sistema imperfeito e insubstituível. Seus riscos são reduzidos pelo mérito de se poder corrigir escolhas em um período previamente pactuado. Mas a decisão da maioria nem sempre é a melhor para a coletividade. Está aí o Brexit como prova mais recente do desastre que por vezes ela provoca.

Trump, como já demonstrou fartamente, só respeita os pactos quando vence. Sua eleição perfura não só a alma da democracia, mas os valores erguidos contra a tirania, a crença na “igualdade, liberdade, fraternidade”, que inspirou o mundo, o apreço à honra e à verdade. Com Trump passa a imperar a lei do “drill, baby, drill”.

 

Mary Zaidan é jornalista 

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