Aos 101 anos, idosa relata memórias de isolamento em um dos maiores leprosários do Brasil: ‘Não podia nem dar a mão’


Mafalda Nardo, de 101 anos, ainda mora num dos pavilhões da enfermaria do asilo-colônia Pirapitingui, em Itu (SP). Idosa de 101 anos conta momentos vividos no Hospital Pirapitingui de Itu
Uma vida que passou diante dos olhos, mas sem sair do mesmo espaço. Aos 101 anos, Mafalda Nardo é testemunha das mudanças do mundo e de uma das épocas mais difíceis do auge da transmissão da hanseníase no Brasil. Na juventude, ela foi uma das vítimas da doença e, por isso, foi internada de forma compulsória no asilo-colônia Pirapitingui, em Itu (SP).
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Até hoje, a idosa mora em um dos pavilhões da enfermaria do antigo leprosário, administrado atualmente pelo Hospital Dr. Francisco Ribeiro Arantes. Em entrevista à TV TEM, Mafalda contou as lembranças do lugar em que viveu a maior parte da vida.
“Eu envelheci aqui, vim com 14 anos. Na minha família, eram dez irmãos comigo. Todos [bem] de saúde, só eu que fiquei doente”, conta.
Idosa de 101 anos relata memórias da vida num dos maiores leprosários do Brasil, em Itu (SP)
Arquivo Pessoal
A idosa nasceu em Piracicaba (SP), em 1926. Foi diagnosticada com hanseníase aos 13 anos, quando trabalhava numa fábrica de tecidos.
“Eu era vizinha de um doutor e ele percebeu que eu era doente de lepra, mas não contou. Ele só falou ‘vai trabalhar na fábrica’ para você ficar aposentada, porque um dia você terá que ir embora de Piracicaba. Eu não vou contar para você porque eu não tenho licença de contar, mas você está doente. Ele mandou eu ir ao posto de saúde. Lá, colheram o material e deu positivo.”
A hanseníase é causada pelo bacilo de hansen, que afeta os nervos e a pele. Era chamada de lepra no Brasil até 1976. A mudança na nomenclatura ocorreu por meio de uma lei federal, para o fim do estigma e preconceito que envolvem a doença.
Leprosário, em Itu (SP), foi um dos maiores do Brasil
Arquivo Pessoal
Internação no asilo-colônia
O asilo-colônia Pirapitingui foi inaugurado em 1931, durante a política de segregação, que internava as pessoas diagnosticadas com hanseníase de forma compulsória. O espaço fica às margens da Rodovia Waldomiro Corrêa de Camargo (SP-079), na altura do quilômetro 55, e chegou a abrigar mais de cinco mil pessoas no período mais crítico da transmissão da doença, na década de 1940.
A primeira internação de Mafalda, no entanto, foi no asilo-colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes (SP), aos 14 anos. “Quando fiquei doente, não me internei no Pirapitingui porque vi na fotografia uma mulher leprosa, tudo com o pé inchado, aquele risco na sobrancelha…”
“Falei ‘lá não quero ir’. Fui para Santo Ângelo, era a mesma coisa. Era igual aqui os leprosos, os doutores que cuidavam da gente, no começo era duro. Eu saí de alta de Santo Ângelo, depois tive que me internar porque voltou a moléstia”, lembra.
Idosa de 101 anos relata memórias da vida em um dos maiores leprosários do Brasil. na cidade de Itu (SP)
Arquivo Pessoal
Depois de Santo Ângelo, em 1941, Mafalda foi internada no asilo-colônia Pirapitingui, onde continua até hoje, 83 anos depois. Durante a vida, ela trabalhou como enfermeira no hospital, cuidando dos pacientes com hanseníase, e também se casou por duas vezes.
“Fui enfermeira, fazia injeção, tudo o que era necessário para doente. Era uma enfermeira completa até, só que era doente. (…) As famílias ficavam nervosas porque não dava alta, e eu falava para elas que não tinha medicamento ainda.”
Embora a hanseníase seja considerada uma doença milenar, o medicamento mais eficaz que possibilitou a cura da doença apenas foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1981.
“Não podia nem dar a mão”
Na época em que não havia o medicamento, Mafalda conta que seus familiares sempre a visitaram em Itu. No entanto, as visitas eram separadas num espaço chamado “parlatório”.
“Tinha o Parlatório, nós doentes ficávamos para cá, tinha uma divisão no meio, e o corredor que afastava as visitas de nós doentes. Quando tinha visita a gente entrava no Parlatório e não podia nem dar a mão. Eu ia de guarda-chuva para dar a mão ao guarda-chuva, mas minhas visitas não entravam.”
Vítimas de segregação do asilo-colônia que isolou pessoas com hanseníase ainda aguardam para serem indenizadas
Leprosário, em Itu (SP), foi um dos maiores do Brasil
Reprodução/TV TEM
Em 2017, o asilo-colônia de Itu foi tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat). O local funcionava como uma “mini cidade” e se destacava pela diversidade de edificações, casas e dimensão territorial.
Atualmente, são 38 pacientes que vivem na enfermaria do asilo-colônia de Itu. Eles não possuem mais a doença, mas precisam tratar as sequelas. Nas casas da colônia, são 65 ex-pacientes que moram com os familiares, somando 129 moradores.
Idosa de 101 anos relata memórias da vida num dos maiores leprosários do Brasil, em Itu (SP)
Arquivo Pessoal
Comemoração do centenário
Apesar do sofrimento da doença e distanciamento da família, Mafalda afirma que teve momentos felizes no asilo-colônia, onde fez muitas amizades e até hoje recebe os cuidados e carinho da equipe médica.
“Aqui era alegre, tinha cinema, tinha baile, eu dançava. Tinha até orquestra aqui. Agora estou na cama porque sofro da coluna, mas quando eu era mocinha eu trabalhava, tudo o que eu gostava eu fazia. Era mocinha de tudo. Envelheci no ‘Pira’. É uma vida.”
Quando Mafalda completou 100 anos, em 26 de fevereiro de 2023, a equipe médica responsável por ela fez uma festa em comemoração. Foi um momento inesquecível para ela.
“Fizeram uma festinha, estava bonitinha a festinha. Foi surpresa! Veio o pessoal de saúde para comemorar. Teve bolo e tudo. Foi uma homenagem para mim.”
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