Problema não é jornalistas namorarem com políticos (por Bárbara Reis)

Esta semana a New York e a sua correspondente para a área da política em Washington anunciaram que vão “separar-se”, ou seja, acordaram que a jornalista vai sair da revista.

O que aconteceu? Comecei por parar na expressão “affair digital”. Não percebi o que era.

A maior parte dos jornais diz em título que a jornalista saiu por causa de uma “relação pessoal” que teve com um político. Tiveram uma “personal relationship”.

Fui ler e percebi que o caso está dentro do que há de mais antigo nas relações amorosas: foi um affair secreto. Ela estava noiva (de um jornalista) e ele é casado (com uma actriz).

Depois, percebi que, sendo um clássico, é um caso moderno na vertente tecnológica. Eles não tiveram uma relação física, nunca deram sequer um beijo. Tiveram um “affair digital”. Durante meses, jornalista e político trocaram mensagens amorosas e mais do que amorosas. Os tablóides divertem-se há semanas a falar de sexting, a reportar e a inventar (num caso, de forma assumida) sobre o estilo das mensagens e o teor da intimidade.

Tudo normal. Ainda não estou surpreendida. O interessante vem a seguir.

A jornalista escreve há meses sobre a campanha para as presidenciais norte-americanas de 5 de Novembro e o político foi durante meses candidato a essas eleições.

A jornalista da New York é Olivia Nuzzi e o político é Robert F. Kennedy Jr., que em Agosto suspendeu a campanha e anunciou que apoiava Donald Trump.

Os dois conheceram-se em Outubro de 2023, quando Nuzzi preparava um perfil de Kennedy Jr. para a edição da New York de fim de Novembro. O texto era grande, tinha 25 mil caracteres, e foi na sequência da troca de mensagens que é normal fazer-se a seguir a uma entrevista deste tipo que os dois iniciaram o “affair digital”.

Ela pôs fim ao noivado com Ryan Lizza, correspondente do Politico em Washington e co-autor da newsletter Playbook, com quem vivia; Kennedy Jr. ter-se-á gabado aos amigos de que estava a receber mensagens tórridas de uma das mais famosas jornalistas de Washington; o mexerico terá chegado aos ouvidos de Lizza, e o jornalista decidiu “arruinar a vida e reputação” de Nuzzi fazendo o caso chegar ao conhecimento dos chefes da ex-noiva.

Diz o New York Times, em registo bem mais sóbrio do que muito do que se pode ler sobre o caso, que “a Sra. Nuzzi apresentou uma providência cautelar temporária contra o Sr. Lizza e acusou-o de a ameaçar com violência, piratear os seus dispositivos, entregar ‘informações prejudiciais’ ao seu empregador e de a chantagear como forma de reatar a relação”.

Os dois jornalistas foram suspensos de forma temporária das suas funções, ela na New York, ele, no Politico, enquanto os jornais faziam averiguações internas para analisar o impacto da “relação pessoal” com Kennedy Jr. no trabalho jornalístico de ambos.

O inquérito às reportagens de Nuzzi, feito por um escritório de advogados, “não encontrou erros ou vieses”. Numa nota aos leitores publicada nesta segunda-feira, a New York disse que, “no mês passado, a revista contratou o escritório de advocacia Davis Wright Tremaine para analisar o trabalho de Olivia Nuzzi durante a campanha de 2024”. A empresa chegou “a uma conclusão igual à da análise interna inicial da revista sobre o trabalho publicado, não tendo encontrado incorrecções nem provas de parcialidade”. E termina: “No entanto, a revista e Nuzzi concordaram que o melhor caminho a seguir é separarem-se. Nuzzi é uma escritora de talento único e orgulhamo-nos de ter publicado o seu trabalho ao longo dos seus quase oito anos como nossa correspondente em Washington. Desejamos-lhe o melhor.”

Quem tornou a história pública foi Oliver Darcy, jornalista que saiu este Verão da CNN norte-americana (fazia o influente Reliable Sources) para criar a Status, uma newsletter sobre media. Em Setembro, contactou a revista e a jornalista e citou Nuzzi em on: “No início deste ano, a natureza de alguma comunicação” que tinha com “um antigo objecto de reportagem tornou-se pessoal”, mas, acrescentou, durante os meses seguintes, não fez “nenhuma reportagem directa” sobre ele, nem o usou como fonte. “A relação nunca foi física”, diz Nuzzi, “mas deveria ter sido revelada para evitar a aparência de um conflito de interesses. Arrependo-me profundamente de não o ter feito imediatamente e peço desculpa àqueles que desiludi, especialmente aos meus colegas da New York.”

Nesse primeiro artigo sobre o caso, de 19 de Setembro, a Status diz que “Nuzzi não revelou a sua alegada relação com Kennedy à New York” e que a revista só tivera conhecimento dela pouco antes. A newsletter dá a notícia da suspensão de Nuzzi e do inquérito interno e cita a revista:

“Recentemente, a nossa correspondente em Washington, Olivia Nuzzi, reconheceu aos editores da revista que se tinha envolvido numa relação pessoal com uma pessoa que foi relevante na campanha de 2024 enquanto fazia reportagens sobre a campanha, uma violação das normas da revista em matéria de conflitos de interesses e transparência”, diz um porta-voz da New York em resposta às perguntas da Status. “Se a revista tivesse conhecimento desta relação, ela não teria continuado a cobrir a campanha presidencial.” E termina: “Lamentamos esta violação da confiança dos nossos leitores.”

Para o jornalismo, o problema ético não é o affair. O mundo está cheio de jornalistas casados ou que namoram com políticos. O problema de Nuzzi não foi namorar com um político. O problema foi esconder e continuar a escrever sobre a campanha com esse segredo escondido no telemóvel.

 

(Transcrito do PÚBLICO)

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