Antonio Cicero é imortal pela escrita moderna e progressista das letras de música que assinou desde os anos 1970


Parceiro de Marina Lima e Adriana Calcanhotto, entre outros grandes nomes da MPB, o compositor morre aos 79 anos e deixa obra musical que jamais considerou menor do que o trabalho como poeta. ♫ OBITUÁRIO
♪ Antonio Cicero se tornou imortal há sete anos ao ser eleito em 2017 para a cadeira 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL). Só que, na ocasião, o compositor, poeta e filósofo Antonio Cicero Correia Lima (6 de outubro de 1945 – 23 de outubro de 2024) já tinha sido imortalizado pela obra construída como letrista de música popular.
Cicero deixa livros cultuados no meio literário, sobretudo Guardar (1996), editado em 1996. Mas, na língua do povo, o artista carioca – morto hoje aos 79 anos, em Zurique, na Suíça, por meio de eutanásia – passa para posteridade por conta dos versos escritos para músicas de parceiros como Adriana Calcanhotto, Lulu Santos, Arthur Nogueira, João Bosco e, claro, Marina Lima, a irmã compositora que levou o poeta para o mundo da música na segunda metade dos anos 1970.
Diagnosticado com a doença de Alzheimer, Antonio Cicero preferiu se retirar voluntariamente de cena. Ateu desde a adolescência, como ressaltou na carta de despedida que deixou com o companheiro Marcelo Pies, Cicero acreditava no poder da palavra. E foi com uma escrita moderna que ele fez nome na música brasileira.
Antonio Cicero virou letrista de música à própria revelia. E logo de cara sofreu a ação da censura. Em meados da década de 1970, a então desconhecida Marina Lima, tirou o poema Alma caiada da gaveta e criou melodia para os versos do irmão, sem o consentimento e sem sequer o conhecimento do autor. O poema virou a música também intitulada Alma caiada, que ganhou a voz de Maria Bethânia em gravação feita para o álbum Pássaro proibido (1976), mas excluída do repertório do disco por ação da censura.
Na sequência, vieram mais músicas feitas por Marina a partir de poemas de Cícero, então já com o conhecimento do autor dos versos. Até que o próprio poeta decidiu escrever versos para serem musicados pela irmã, se tornando oficialmente letrista de música e parceiro constante de Marina, cantora e compositora projetada em 1979 com álbum em que apresentou as primeiras parcerias com Cicero. Estavam lá A chave do mundo, Maneira de ser, Memória fora de hora, Tão fácil e Transas de amor (Os sonhos de quem ama).
A parceria teve o auge de popularidade nos anos 1980, década de sucessos nacionais como O lado quente do ser (1980), Charme do mundo (1981), Fullgás (1984), Pra começar (1986) e Virgem (1987), mas gerou hits nos anos 1990 – como Acontecimentos (1991) e Deixa estar (1998) – e foi bem até 2006, ano de Três, derradeiro hit da parceria.
Antonio Cicero foi letrista contemporâneo, progressista – inclusive na abordagem do sexo sem culpa – e nunca trivial. Os versos do poeta da música sempre foram inesperados, incomuns, sem rimas banais. Há forte traço de originalidade nas letras do compositor.
Cicero gostava de escrever letras de música e nunca se achou poeta menor por essas letras. Ao dissertar sobre a relação íntima entre poesia e letra de música, o artista jamais adotou o discurso intelectual de que a poesia é superior à letra de música. Ao contrário. O escritor refutava argumentos que tentavam legitimar a supremacia da poesia, como o pensamento redutor de que poemas teriam estrutura mais complexa enquanto letras de música seriam invariavelmente pautadas pela simplicidade.
Quem há de duvidar dessa equivalência ao ler versos escritos por Cicero para músicas de Adriana Calcanhotto (em parceria que se iniciou em 1992 com Água perrier e que gerou o sucesso Inverno em 1994), Roberto Frejat (Bagatelas, de 1986), João Bosco – parceiro de Cicero e de outro poeta, Waly Salomão (1943 – 2003), em todas as 12 músicas do álbum Zona de fronteira (1991) – e Arthur Nogueira, com quem assinou músicas como Sem medo nem esperança (2015), rock apresentado na voz de Gal Costa (1945 – 2022)?? Sem falar na parceria ocasional com Lulu Santos que gerou o hit radiofônico O último romântico (1984).
Enfim, ao sair voluntariamente de cena para não ser vencido pela doença, Antonio Cicero tem acentuada a aura de imortalidade que adquiriu não pela ocupação da cadeira da ABL, mas pela força perene de letras que sempre hão de reverberar no universo pop brasileiro.
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