
Empresas registram pessoas durante atividades físicas e as vendem para os próprios atletas por meio de plataformas. Juristas afirmam que prática pode esbarrar em limitações legais. Em 2024, a consultora financeira Andrea Luísa Watanabe de Mello, 40 anos, fotografada pedalando na ciclovia que margeia o Rio Pinheiros, em São Paulo, ela só soube da foto depois e acabou comprando para ajudar o fotógrafo.
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Em 2024, a consultora financeira Andrea Luísa Watanabe de Mello, de 40 anos, recebeu uma notificação no Instagram após ser marcada em uma foto pedalando na ciclovia do rio Pinheiros, em São Paulo.
A imagem foi feita e publicada por um fotógrafo, que queria vendê-la para Andrea por meio de um site com imagens de eventos esportivos.
Andrea não sabia que havia sido fotografada.
“No início, achei estranho, mas comprei para dar uma força”, disse ao g1.
Fotografar atletas é comum em eventos esportivos como maratonas ou provas de ciclismo. Nesses casos, quem se inscreve autoriza o registro de sua imagem durante o evento.
A prática, entretanto, vem ganhando espaço em locais públicos onde atletas amadores fazem seus treinos individuais, como no campus da Universidade de São Paulo (USP), na própria ciclovia do rio Pinheiros e no Parque Villa Lobos. E, para especialistas, pode esbarrar em limitações legais caso as imagens sejam feitas sem consentimento.
Fotógrafos registram treinos individuais e vendem fotos para os próprios atletas
O responsável pela foto de Andrea é o fotógrafo Aldo Nakamura, de 58 anos. Ele afirma que as pessoas que não querem ser fotografadas geralmente fazem sinais negativos com a cabeça ou escondem o rosto. “Respeito o direito de o atleta não querer ser fotografado. Nesse caso, eu não faço o clique e abaixo a câmera em respeito ao atleta”, disse.
Andrea comprou três registros feitos por Aldo na plataforma Fotop, onde fotógrafos podem vender fotos tiradas de pessoas em treinos e eventos esportivos.
O g1 tentou contato com a Farah Service, empresa responsável pela gestão da ciclovia do rio Pinheiros, mas não obteve resposta sobre os acordos para a presença dos profissionais no local.
Em agosto de 2023, a Fotop foi processada por uma mulher que havia sido fotografada dois anos antes, quando tinha 17 anos, na orla de uma praia de Araruama (RJ), cidade a 120 Km do Rio de Janeiro. A mulher disse que enviou um e-mail, pedindo a remoção das fotos, mas não foi respondida. No fim de 2024, ela fez um acordo, sendo indenizada em R$ 2 mil pela Fotop e em R$ 1 mil pelo fotógrafo.
Em entrevista ao g1, André Chaco, fundador da Fotop, disse que a política de remoção de fotos foi melhorada e um sistema de identificação de idade foi implementado após o fato.
“Esse é um caso antigo em que, eventualmente, a gente pode ter falhado na parte da remoção de fotos. E de lá pra cá, a nossa preocupação com a LGPD, e tudo isso veio muito antes do processo aparecer, e [se manteve] muito depois do fato”, complementou.
A Fotop e outras empresas do ramo, no geral, atuam em dois formatos: por parcerias com organizadores de provas, com termos de consentimento, e por fotos espontâneas em locais públicos, onde são registradas atividades como corrida e ciclismo.
Denis Alcântara Carretero, 31 anos, também é cliente da Fotop.
Arquivo pessoal
Serviço crescente
A Fotto, outra empresa que faz o mesmo tipo de serviço, também trabalha com fotógrafos autônomos e eventos fechados.
“O sucesso desse modelo mostra que a demanda por esse tipo de serviço existe. Mas não podemos ignorar o direito das pessoas. Sabemos que alguns fotógrafos estão buscando nossa ajuda para tornar esse processo mais transparente”, diz Marcelo Moscato, CEO da Fotto.
No caso da Fotop, para acessar as fotos, os usuários enviam uma selfie (autorretrato) para a plataforma, que usa Inteligência Artificial para encontrar rostos compatíveis. A empresa diz que as selfies são apagadas após o uso, mas não soube informar por quanto tempo as fotos de atletas permanecem armazenadas.
Já a Fotto adota, além da selfie, outros dois formatos: busca em todas as fotos da plataforma ou carregamento de uma foto do atleta para que a Inteligência Artificial faça o reconhecimento do rosto.
Os fotógrafos não se escondem. Geralmente, estão identificados e não interrompem os treinos dos atletas para pedir autorização. “A orientação é sempre respeitar o direito da pessoa de não ser fotografada [em locais públicos]”, afirma o fotógrafo Ricardo Fantagussi.
Morador de Maceió (AL), Leandro, de 44 anos, começou a fazer caminhadas na praia de Pajuçara, mas desistiu após três dias. Ele afirma que uma das razões que o levaram a isso foi a presença de fotógrafos. “Eu atravessava a rua [para evitar o fotógrafo]”, diz.
“Meses depois, comentei com um amigo fotógrafo, que também entrou para o site, e ele disse que é só fazer o sinal de ‘não’ para não ser fotografado, mas ficar se policiando é muito chato”, disse.
‘Gasto cerca de R$ 700 por ano’
Karina Navarro, 44 anos, corre na Universidade de São Paulo (USP) e diz não se importar em ser fotografada.
Arquivo pessoal
Karina Navarro, de 44 anos, não se incomoda com as fotos tiradas durante seus treinos na Universidade de São Paulo (USP). Ela gasta cerca de R$ 700 por ano em fotos de corrida, assim como Denis Alcântara Carretero, de 31 anos, que corre há cerca de cinco anos e também é cliente da Fotop .
Denis também não se incomoda com as fotos, ele afirma que nunca pediram seu consentimento, mas que compra as imagens.
O Parque Villa Lobos é um dos pontos queridinhos dos corredores — e também dos fotógrafos. E é onde a fisioterapeuta osteopata Livia Soussumi, 60 anos, corre logo cedo. Ela corre desde 2007 junto com a família. A fisioterapeuta não sabe dizer quanto gasta comprando fotos porque a cada rodada um membro da família é quem paga pelas imagens.
A Reserva Parques, concessionária que administra o Parque Villa Lobos, afirmou que as fotos clicadas no local “ficam restritas aos usuários” e que é possível solicitar a exclusão imediata caso o atleta não queira mantê-las na plataforma. (Leia a nota na íntegra no fim da reportagem).
Sem consentimento não pode
O g1 ouviu 3 especialistas que afirmam que esse tipo de prática se enquadra no uso comercial de imagens de pessoas e que, portanto, precisariam de um consentimento delas para serem feitas.
Bruno Bioni, da Data Privacy, organização que promove a proteção de dados e direitos digitais, afirma que não é adequado capturar imagens sem autorização e que esperar que a pessoa solicite a remoção viola a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), que considera a imagem um dado pessoal.
“Esse modelo de negócio apresenta problemas jurídicos”, disse. “A ausência de uma política clara para o armazenamento e descarte das imagens evidencia o descumprimento das normas que exigem uma gestão responsável dos dados pessoais”, disse.
Bioni também ressalta que uma eventual falta de transparência no armazenamento ou no uso dos dados implica em uma desconformidade com a LGPD.
Diferente de foto jornalística
Alessandro Hirata, professor da Faculdade de Direito da USP de Ribeirão Preto, diz que o consentimento é necessário por que a finalidade é vender as imagens. A situação é diferente, explica ele, de fotografias para outros fins, como jornalismo ou segurança pública.
“Entende-se que há um princípio maior da Constituição, da liberdade de expressão, para poder permitir [a foto sem consentimento] nos casos de jornalismo e da segurança pública”, disse.
Chiara de Teffé, coordenadora da pós-graduação em direito digital da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que é por isso que, em eventos fechados, é comum haver a assinatura de um termo de consentimento
“Sempre que houver uso comercial da imagem de alguém, esse uso precisa de consentimento prévio”, afirma.
O que dizem as empresas
André Chaco, da Fotop, diz que os fotógrafos podem usar a plataforma livremente quando fotografam em espaços públicos, contanto que sigam as leis vigentes e também as regras da plataforma. “A empresa se responsabiliza por remover qualquer conteúdo que infrinja normas ou gere reclamações”, afirma.
Ele diz ainda que a empresa tem processos para garantir a conformidade com a LGPD. A Fotop usa Inteligência Artificial para reconhecimento facial e de números de identificação em competições para tentar garantir que apenas os atletas tenham acesso às próprias fotos.
A empresa garante que não utiliza as imagens armazenadas para treinar algoritmos de reconhecimento facial.
O que diz a Fotop sobre o direito de imagem e de privacidade: não comentamos sobre casos específicos. Seguimos os procedimentos orientados por advogados especialistas no tema, garantindo que o tratamento de dados esteja em conformidade com as diretrizes fornecidas e reforçamos sempre todas as orientações dos locais aos nossos fotógrafos atuantes, para que estejam sempre dentro da legislação.
O que diz a Reserva Parques sobre parcerias: Todos os contratos firmados com parceiros e prestadores de serviços do Parque Villa-Lobos observam as legislações vigentes e são fiscalizados pela Reserva Parques, responsável pela gestão da área.
A parceria entre a empresa Fotop e o parque Villa-Lobos prevê o registro de práticas esportivas de grupos em locais públicos, como ocorre em diversos parques da cidade, com o objetivo de fomentar e registrar estas atividades. O visitante que deseja imagens individuais, deve solicitar à equipe. Centenas de atletas já utilizaram o serviço no parque.
Cabe esclarecer que, de acordo com a proposta, as fotos de treinos ficam restritas aos usuários que devem utilizar o reconhecimento facial para acessá-las. Também é possível solicitar a exclusão imediata caso não queira mantê-las na plataforma.
Vale ressaltar que os termos do acordo comercial preveem sanções em caso de descumprimento de qualquer normativa – legislações federal, estadual e municipal, além do contrato de concessão. Por fim, todos os prestadores da empresa também devem estar devidamente identificados durante os trabalhos.