À margem esquerda do Tietê

Se inventasse uma imagem em IA para resumir esse primeiro turno na capital paulista, talvez criasse um toboágua gigantesco e colorido sobre o Rio Tietê. A gente entra, alcança boa velocidade, dá um frio na barriga, mas no final, ao invés de adrenalina, sentimos uma angústia atordoada, porque nada muda e não há futuro. Depois ficaria ali, sentado à margem esquerda do rio imundo a tossir com o trânsito na marginal.

É ingenuidade acreditar que um governo Boulos seria transformador – sim, é quase impossível Ricardo Nunes não ser reeleito. Mas as gestões de esquerda sempre deixam marcas na cidade. A própria postura do candidato, querendo agradar os eleitores de centro, impõe a certeza que a realidade eleitoral prevaleceria sobre ações mais radicais contra a pobreza ou moradia.

O episódio asqueroso do “cheirador”, por exemplo, foi uma oportunidade perdida para defender uma política de drogas mais humana. Restou vitimizar-se. Ok, são essas as peças do tabuleiro em uma cidade conservadora como São Paulo, ainda mais quando os ventos sopram à direita. Convém pontuar, entretanto, os votos conquistado por Marçal e Nunes na periferia. Que esquerda é essa que não chega aos pobres?

“A esquerda é simplesmente a expressão de um impasse”, afirmou o filósofo Vladimir Safatle, que há anos aponta os esgotamentos desse campo político. No plano federal, a imposição do Centrão sobre Lula com fim de grandes acordos políticos substituída por uma sucessão contínua de pequenos e temporários pactos. A maioria dos estados e prefeituras são comandadas pelas forças conservadoras. Mais do que nunca, o governo Lula é uma ilha de remendos.

A imagem dessa esquerda como voz e defensora dos trabalhadores perdeu-se. Os programas sociais são fundamentais, mas não carregam o mesmo discurso de indignação, crítica e luta. A esquerda era uma alternativa, “Um outro mundo é possível” era o slogan do Fórum Social Mundial no final dos anos 1990. Percebo em minhas palavras um tom de nostalgia. E a nostalgia é uma reconstrução positiva do passado, uma irrealidade. É também uma fuga quando o presente se esvazia de sentido e o futuro se assemelha a um muro.  Caio na armadilha depressiva neoliberal. Outra armadilha: acreditar que reside no voto a solução dos problemas.

Acabei de baixar “Realismo Capitalista”, de Mark Fisher. Seu subtítulo merecia um pixo: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Outro título instigante: “A rebeldia se tornou de direita?”, de Pablo Stefanoni. Neles, um resumo de uma particularidade de nosso tempo. A impossibilidade de criar alternativas ao capitalismo, a criminalização da radicalização à esquerda, a permissividade com os discursos de ódio e a força de um discurso conservador contra o sistema (neofascismo, em outras palavras). Podem aparecer Bolsonaros e Marçais e suas violências à vontade. A democracia pode morrer desde que o sistema econômico não mude.

Mas é isso. Ficaria ali, à margem esquerda do Tietê, olhando no celular os resultados das eleições em todo o país, enquanto o toboágua começa a ser desmontado. Foi bom enquanto entreteve o público.

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