Da quebrada para a quebrada: iniciativa fortalece comunidade com projetos que vão de aula de ‘gambiarra’ a moeda própria


Os institutos parceiros NUA e Cacimba contam com mais de 48 programas na Zona Leste, entre eles uma ‘uni-diversidade’ com uma trilha de desenvolvimento para jovens de 14 a 18 anos e um banco próprio que começou a implementar uma moeda local. Instituto Cacimba e NUA atuam no bairro da União Vila Nova, na Zona Leste de SP
Aline Freitas/g1
Aula de marcenaria, estúdio de podcast, alimentação orgânica, grupo de cerâmica e agência de notícias. Apesar de não parecer, essas atividades têm muito em comum umas com a outras, pelo menos no bairro da União de Vila Nova, na Zona Leste de São Paulo.
Por lá, duas instituições parceiras – NUA e Cacimba – atuam em prol da comunidade. Para este ano, o foco é o avanço na implementação da moeda local, criada numa tentativa de baratear os produtos e evitar que os moradores comprem algo fora da região.
O g1 esteve no bairro para entender como funciona a iniciativa e conferir parte dos 48 projetos apoiados pelos institutos.
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Nesta reportagem você vai conferir:
O que são? Como surgiram?
Banco Cacimba
Favela ESG e IDPH
Agência de comunicação e centro para crianças
Mulheres do GAU e alimentação
Uni-diversidade da quebrada
O que são NUA e Cacimba? Como surgiram?
A história da transformação social na União de Vila Nova começou há cerca de 20 anos, na época em que o artista plástico Hermes de Sousa, fundador do NUA e presidente do Cacimba, saiu do presídio em que estava.
Já em liberdade, foi convidado por um amigo jornalista a abrir um ateliê no Bixiga, no Centro. Hermes, então, resolveu ir à União de Vila Novaa procurar um homem com quem havia ficado preso. “Quando eu cheguei, ele morava dentro do lixão. Foi assim que decidi ficar aqui, e o NUA nasceu, dentro de um lixão, fazendo reciclagem de materiais”, conta.
Lixão em que surgiu o NUA
Arquivo pessoal/Hermes de Sousa
A comunidade se juntou a ele e começou uma OS (Organização da Sociedade Civil). Nos primeiros anos, além da reciclagem, o espaço recebia aulas de capoeira e oficinas de marcenaria.
Desde então, o NUA – que significa “Nova União da Arte” – busca viabilizar a criação de projetos relacionados a arte, bem-estar, economia solidária e alimentação. Para poder tocar esses programas, o instituto recorre a voluntários, à expertise da própria comunidade e, claro, a recursos vindos de doações e programas de incentivo.
Após 15 anos do NUA nasceu sua instituição-irmã, o Cacimba, que tem como objetivo ser uma outra fonte de recursos para programas de captação em que o NUA não se encaixa.
O presidente do Cacimba até brinca que o instituto não conseguiria ser responsável sozinho por tudo aquilo se não fosse o projeto.
“É que o Cacimba tem um espaço muito grande, vocês têm que ver, cheio de prédios, salas”, brinca, se referindo a uma sala de poucos metros quadrados alojada no prédio da Uni-diversidade da Quebrada (falaremos dela mais para frente), o único espaço físico totalmente destinado ao instituto.
Quanto ao nome, Hermes explica que faz referência à sua região natal.
“Porque no Nordeste se cava cacimba em época de seca. E a cacimba, mesmo sendo cavada na propriedade de alguém, não é do proprietário, é de quem cava”, explica. “Geralmente, quem cava são os homens, mas quem faz a gestão da água são as mulheres, e elas têm a consciência de que não podem levar a água para esbanjar, porque sempre vai vir outra pessoa precisando. Então, há uma consciência, há uma responsabilidade com o outro.”
Para Hermes, o Fundo Cacimba – linha de crédito disponível para a população pelo Banco Cacimba – deve funcionar desta maneira: quem precisa pega os recursos, mas com parcimônia e a consciência de que deve devolver, para que outras pessoas possam pegar emprestado depois.
Em razão das suas contribuições para a sociedade, o Cacimba vai integrar, junto com outras insituições, um manual de como criar uma organização desse tipo. A publicação, prevista para este mês, é de responsabilidade do Idis (Instituto para o Desenvolvimento para do Investimento Social), que apoia o instituto da União Vila Nova através de ações filantrópricas.
Hermes de Sousa, fundador do NUA e do Cacimba, na horta das Mulheres do GAU
Aline Freitas/g1
Banco Cacimba
Banco Cacimba na Uni-diversidade da Quebrada
Aline Freitas/g1
De maneira geral, o Cacimba cuida mais da administração do caixa das instituições e de assuntos relacionados ao dinheiro. Foi lá que surgiu o Banco Cacimba, instituição que possibilita o acesso a crédito facilitado aos moradores e foi responsável implementação de uma moeda local.
O conceito – já utilizado em comunidades como Paraisópolis e no bairro Jardim Maria Sampaio, amboas na Zona Sul – é uma forma de a comunidade manter a circulação monetária dentro da área englobada pelos institutos.
Para o mentor da comunidade, também há outras vantagens. “Como tem um desconto para quem paga com ‘Cacimba’ [o nome da moeda local], isso faz com que as pessoas consumam aqui e economizem o tempo de sair da comunidade e o dinheiro do transporte”, conta.
Mesmo com essas vantagens, Hermes explica que é preciso convencer tanto os empreendedores quanto os consumidores e, por isso, o processo está sendo feito de forma gradual.
As primeiras conversas sobre uma moeda solidária começaram em 2022, com a ideia de abrir um banco digital. Para isso, eles usaram a plataforma do Banco Palmas – o maior banco comunitário do Brasil.
A partir de julho deste ano, as cédulas foram distribuídas para pequenos negócios e fornecidas para a população.
Maxleide Castro é dona de dois empreendimentos, um online e outro físico, na região da União Vila Nova. Neste mês, ela começou a aceitar a moeda em sua loja física.
“Os clientes que utilizarem a moeda Cacimba na loja física terão um desconto de 5%”, conta.
Cédulas da moeda local
Aline Freitas/g1
Para além da moeda local e do acesso ao crédito, o banco também é responsável por divulgar editais de incentivo para projetos empreendedores e pessoais da população.
Sara Correia, de 18 anos, foi aluna da Uni-Diversidade e agora atua como funcionária do NUA. Graças ao incentivo do Cacimba, ela já planeja o lançamento de um livro de poesia que escreveu: “Borboletas Também Morrem”.
“Eu vinha para cá adolescente, agora trabalho aqui e vou lançar meu livro graças a esse lugar”, conta, sobre sua trajetória ligada aos projetos.
Nos últimos seis meses, o Cacimba lançou dois desses editais para apoiar jovens artistas como Sara e pequenos negócios. Parte da bonificação, que vai de R$ 3 mil a R$ 10 mil, é dada em moedas Cacimba.
“São esses 35 negócios que apoiamos que vão começar a falar da nossa moeda, que vão popularizá-la no bairro”, conta Hermes.
Favela ESG e IDPH
O foco sempre foi a melhora da qualidade de vida da população do bairro sem que eles tivessem que ir buscar isso fora de onde nasceram, cresceram e vivem. Para medir e entender como isso é e será feito, as lideranças dos dois institutos criaram o conceito de Favela ESG e o IDPH (Índice de Potencialidades para o Desenvolvimento Humano).
Baseada em seis pilares, no lugar de três, a Favela ESG engloba os conceitos de:
Economia solidária – que, no Cacimba, é representada pelo fornecimento de crédito simplificado e, futuramente, pelos planos da moeda local;
Arte e cultura – que entra a uni-diversidade da quebrada e os projetos como cinema ao ar livre, oficina de escultura e de pintura;
Educação e cidadania – nesse pilar, entram projetos como o centro de convivência das crianças e também a Uni-Diversidade;
Justiça regenerativa – pensando na experiência de Hermes, a comunidade movida pelos institutos acredita na mudança e na regeneração de todos;
Desenvolvimento social e gestão comunitária – a própria comunidade é responsável por manter o ecossistema do NUA e Cacimba em funcionamento e, assim, promover o desenvolvimento que o bairro almeja;
Meio ambiente e segurança alimentar – além dos prédios do projeto serem alimentados por energia solar, a comida que é distribuída nas refeições desses locais é orgânica e feita na horta da comunidade administrada pelas Mulheres do GAU.
O IDPH (Índice de Potencialidades para o Desenvolvimento Humano) mede, assim como o IDH, o desenvolvimento de uma população específica – nesse caso, da comunidade da União Vila Nova.
Segundo estimativas dos próprios institutos, os 48 projetos administrados por NUA e Cacimba beneficiam cerca de 5 mil pessoas no bairro, que tem uma população de 60 mil pessoas. No futuro, Hermes – que agora toca o Cacimba – e Valter Passarinho, diretor do NUA, planejam ampliar a abrangência dos projetos para todos os 360 mil moradores da região de São Miguel Paulista.
Para fazer isso e conquistar todos os outros objetivos das instituições, eles e os demais funcionários recorrem ao Conselho da Comunidade, que é formado por sete mulheres mais velhas que moram na região há anos.
Agência de comunicação e centro para crianças
Centro de Convivência para crianças e adolescentes na União da Vila Nova
Aline Freitas/g1
Na primeira parada da visita, o local apresentado foi o Centro para Crianças e Adolescentes, um espaço para os jovens frequentarem após a escola. As atividades incluem brincadeiras, aulas de reforço, atividades complementares, sessões de filmes, música e almoço.
“Esse centro é diferente dos outros porque nós estamos tentando desconstruir essa coisa de local fechado e designado para apenas uma função”, explica Hermes. “Aqui qualquer um entra e pode participar das atividades.”
Ainda pensando em reaproveitar os espaços, no mesmo prédio funcionam uma rádio e uma agência de comunicação. A Rádio TV Nuar é comunitária e busca impulsionar músicos e personalidades locais. No canal do YouTube, eles compartilham um podcast e gravações de festivais e eventos que acontecem na própria comunidade, com apoio do NUA e do Cacimba.
“Aqui a gente tem o estúdio de podcast, mas que pode virar um estúdio de qualquer coisa. É tudo feito na base da gambiarra”, explica Passarinho.
Já a Agência Nuar é mais voltada para a publicidade e a gerência de mídias. Além de atender contas, possui um programa que busca impulsionar o comércio local.
“A gente pega uma parte do dinheiro que as empresas grandes pagam pelo trabalho que a gente faz e repassa para a Agência Escola – que também é a gente. Aí, na Agência Escola, a gente vai usar para ajudar um comércio local, fazer a identidade visual deles de graça”, explica Gabriel, um dos funcionários da agência de comunicação .
Funcionários da Agência Nuar
Aline Freitas/g1
Mulheres do GAU e alimentação
Espaço das Mulheres do GAU no bairro União Vila Nova, na Zona Leste de São Paulo
Aline Freitas/g1
Localizada onde antes era um lixão e um depósito de alimentos, a horta das Mulheres do GAU é responsável por boa parte do fornecimento de alimentos não industrializados dos projetos dos institutos. O local também funciona como um restaurante.
Durante a visita, Hermes explicou que o local é formado quase que inteiramente por mulheres de origem nordestina que vieram para São Paulo tentar ganhar a vida. Em contato com o NUA, elas criaram o projeto que agora faz parte do ecossistema do bairro.
Antes e depois do espaço em que fica a horta da Mulheres do GAU, parte das iniciativas do NUA
Arquivo pessoal
Uni-diversidade da quebrada
Entrada da Uni-Diversidade da Quebrada, projeto do insituto NUA, na Zona Leste de SP
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Fisicamente, é o espaço que melhor resume o NUA e o Cacimba. Primeiro, porque é a sede das duas instituições e, também, por ser o local que mais concentra projetos, que vão de aulas artísticas a centros de estudo científicos.
O programa principal da instituição é um circuito de cursos voltados à formação intelectual e social de jovens de 14 a 18 anos durante um ano. As aulas são baseadas em cinco pilares: comunicação comunitária; meio ambiente; gastronomia; empreendedorismo e geração de renda; e artística e cultural.
Mas, além desse, há muitos outros projetos gratuitos no espaço:
Gambiarra
Comunidade feita em maquete por um aluno de “gambiarra” Uni-Diversidade da Quebrada
Aline Freitas/g1
No último andar, está a oficina da gambiarra – como chama as aulas de marcenaria. Ali, os alunos, que têm entre 14 e 18 anos, produzem peças de arte com os mais diversos materiais, como sucata e madeira.
O planejamento, segundo Hermes, é que haja uma feira de artesanato no bairro para que eles comercializem esses projetos.
Lua de papel higiênico, feita por um aluno da Uni-Diversidade na quebrada na aula de gambiarra
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Oficinas e rodas de conversa para mulheres
As mulheres da comunidade têm a oportunidade de participar de projetos que englobam oficinas semanais de cerâmica, de costura e rodas de conversa. Segundo Hermes, a iniciativa busca uma ocupação, principalmente, para quem trabalhou a vida inteira e agora, com filhos criados, consegue se encontrar em um novo grupo. Apesar do foco do projeto, todas são bem-vindas.
“Eu sinto que aqui a gente vai se reencontrando”, afirma Maria, uma participante do projeto.
Quadro localizado na Uni-Diversidade da Quebrada
Aline Freitas/g1
Grupos de estudos científicos
Ainda no prédio da Uni-Diversidade da Quebrada, um grupo de adolescentes lideradas por dois professores estudam o papel das libélulas no combate à dengue. Com reuniões semanais, os jovens de 12 a 15 anos tentam entender a viabilidade da criação do inseto predador natural do Aedes aegypti.
Uma iniciativa parecida é a aposta da Prefeitura de Aparecida, no interior do estado, que pretende atrair as libélulas com leguminosas.
Mural grafitado em um dos corredores da uni-diversidade da quebrada
Aline Freitas/g1
*Sob supervisão de Cíntia Acayaba

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