Para o historiador indiano Vijay Prashad, é preciso olhar para o legado de “visionários” como Kwame Nkrumah (1909-1972) para saber enfrentar o neocolonialismo e “moldar o mundo após o imperialismo”. O panafricanista foi o líder da luta pela independência de Gana, a primeira do continente africano, influenciando outros processos de libertação de países africanos.
“É importante tentar entender o que ele estava fazendo em Gana na década de 1960 e o que ele imaginava para o mundo. Temos de olhar para nossos próprios visionários. Não podemos obter as visões apenas da Europa e dos Estados Unidos”, destaca Prashad, em entrevista ao Brasil de Fato.
O historiador, ao lado de Efemia Chela, é um dos organizadores do livro “Kwame Nkrumah: discursos pan-africanistas”, lançado recentemente pela editora Expressão Popular. O livro reúne uma coletânea de textos sobre as ideias de Nkrumah.
O livro contempla momentos cruciais da trajetória política do ganês, desde os primeiros apelos pela independência de Gana até seus chamados pela unidade continental e pela luta contra o neocolonialismo às vésperas do golpe que o destituiu como presidente.
Nkrumah liderou a libertação de Gana em 1957, após se aproximar de pan-africanistas como Marcus Garvey e W.E.B. du Bois e fundar o Partido da Convenção do Povo (CPP). Eleito presidente em 1960, promoveu a industrialização e apoiou movimentos de independência no continente. O ganês foi desposto por um golpe em 1966.
Prashad destaca que, desde cedo, Nkrumah se definia como “um inimigo do colonialismo”. O historiador indiano destaca a abordagem regionalista da política e da economia levada a cabo por Nkrumah e como que ela se relaciona com o contexto político e econômico vivido atualmente pelo continente africano e pelos países do Sul Global.
“É preciso resgatar a vida coletiva em geral. Portanto, termos como democracia não podem se restringir à democracia política ou à democracia do voto. Pessoas como Nkrumah disseram: “Olha, só colocar uma bandeira, ter um hino nacional, isso não é suficiente. Temos que ter uma compreensão muito mais ampla do que significa ser um povo livre, do que significa ser um povo independente”, afirma Prashad.
Confira a entrevista na íntegra:
Vijay, gostaria que você iniciasse trazendo a importância deste livro e do legado de Kwame Nkrumah?
É importante voltar e refletir sobre pessoas como Nkrumah, que foi o primeiro presidente de Gana e conquistou a libertação do imperialismo britânico, mas entendeu imediatamente que a independência de Gana não era suficiente. Era necessário ter um projeto de unidade africana e ele colocou na mesa o pan-africanismo. Foi por causa de Nkrumah que houve a formação, primeiramente, da organização dos estados africanos ou da organização da unidade africana em 1963, hoje chamada de união africana.
Essas pessoas eram visionárias da união da África, com uma abordagem regionalista da política e da economia, da mesma forma que havia uma abordagem regionalista na América do Sul e na América Latina. Se quiser, você pode voltar a Simon Bolívar, mas, na verdade, os fundamentos do regionalismo moderno vêm com a revolução cubana na América do Sul e na América Latina. Mais tarde, na Ásia, com a criação recente do acordo comercial REP, que reúne 30% da população mundial em uma zona comercial na Ásia e assim por diante.
Essas pessoas, como Nkrumah, são visionárias sobre como moldar o mundo após o imperialismo, e é por isso que é importante que as pessoas voltem a ler o que Nkrumah estava dizendo sobre seu entendimento do neocolonialismo, um termo que ele usou em um livro publicado em 1965. É importante tentar entender o que ele estava fazendo em Gana na década de 1960 e o que ele imaginava para o mundo. Temos de olhar para nossos próprios visionários. Não podemos obter as visões apenas da Europa e dos Estados Unidos.
Em um dos textos assinados por você dentro do livro, ganha destaque a ideia de Nkrumah de que a soberania política sem uma orientação socialista apenas trocaria um conjunto de tiranos por outro. O que você destaca dessa colocação?
Se realmente levarmos a democracia a sério, ela não pode ficar no nível político. Não se pode simplesmente ter o direito de votar e parar por aí. Se levarmos a democracia a sério, temos de entender a democracia econômica. O que isso significa? Significa o direito de cada pessoa de ter acesso à capacidade de melhorar seu padrão de vida econômico, de aumentar suas chances de acumular um pouco de renda além do consumo, o que poderíamos chamar de riqueza e assim por diante. É preciso ter democracia econômica. Não se pode permitir concentrações de riqueza. Se você leva a democracia a sério, precisa ter democracia social.
A sociedade precisa ser democratizada. É preciso ter democracia cultural. Tem de haver lugares como este, onde as pessoas possam vir, desfrutar de uma vida cultural, apreciar música, apreciar arte, participar de uma vida cultural. É preciso resgatar a vida coletiva em geral. Termos como democracia não podem se restringir à democracia política ou à democracia do voto. Então, pessoas como Nkrumah disseram: “Olha, só colocar uma bandeira, ter um hino nacional, isso não é suficiente. Temos que ter uma compreensão muito mais ampla do que significa ser um povo livre, do que significa ser um povo independente”.

Nkrumah acreditava que a unidade era essencial para salvaguardar o progresso da independência do povo africano e que a fragmentação política e o “tribalismo” eram heranças do colonialismo e deveriam ser superados. Tantas décadas depois, você acha que houve algum tipo de avanço nessas ideias?
Estamos falando não apenas de avanços políticos, mas também de como a União Africana se tornou mais forte e assim por diante. Também é preciso levar em consideração o lado cultural e social da questão. Qual é a consciência dos milhões, centenas de milhões, mais de um bilhão de africanos? Como eles veem seu continente? Veja o caso do Brasil. Quero dizer, os brasileiros se veem principalmente como brasileiros? Eles reconhecem os outros brasileiros como brasileiros? As profundas divisões na sociedade brasileira de hoje mostram que há uma grande crise social e cultural. Não é apenas uma crise política, é uma crise cultural. Ande pela cidade de São Paulo, muros altos, arame farpado. É quase como se as pessoas estivessem vivendo dentro, sabe, dessas comunidades que estão se distanciando dos outros brasileiros. Essa é uma crise social, uma crise cultural.
Os problemas políticos que aparecem na superfície nem sempre são a melhor maneira de julgar isso. Em um continente como a África, com tantas línguas, tantas histórias diferentes, vai levar muito tempo para criar uma consciência do que significa ser africano. Sabe, há algumas coisas que eu observo. O fato de haver uma liga de futebol africana, de as pessoas terem uma copa africana, de haver uma ideia de desenvolvimento do cinema africano, da música africana e assim por diante.
Tudo isso é muito importante. Essas ideias culturais que unem um continente inteiro às vezes estão à frente das ideias políticas. Sabe, às vezes olhamos para o lugar errado para entender onde as unidades estão sendo desenvolvidas. Há unidades sendo desenvolvidas e essas unidades virão com o tempo, porque a coisa mais difícil de mudar não é a política, é a cultura das pessoas, são suas mentalidades.
Como você acha que as ideias de Nkrumah estão relacionadas hoje com a luta pan-africanista contemporânea, em particular no Sahel e na África do Oeste?
Sabe qual é a coisa mais triste? O mais triste é que algumas das coisas que ele queria mudar permanecem intactas até hoje, 70 anos depois. Vou lhe dar um exemplo: taxas de eletrificação em Burkina Faso. A eletrificação rural é de cerca de 7%. Isso significa que 7% das estruturas fixas têm uma conexão elétrica que funciona. No grande projeto de Nkrumah, eram 70%. O grande projeto dele era construir uma represa para gerar eletricidade para o povo de Gana. Por quê? O que é eletricidade? A eletricidade é uma das grandes forças democratizantes.
O que quero dizer com isso? Se você se lembra de quando era criança, quando voltava da escola, queria estar na rua jogando futebol ou, sabe, correndo com seus amigos ou tocando violão ou fazendo alguma coisa. E então, cada vez mais tarde, você ouvia um pai dizer: “Volte para casa. Você jantou. Dever de casa”. Se não há eletricidade, não há lição de casa. E você não quer que as crianças percam a oportunidade de correr no final da tarde, no início da noite.
A eletricidade é extremamente democratizante. Os trabalhadores chegam em casa e podem ler, assistir à televisão ou acessar a Internet. Esses são, na verdade, aspectos fundamentais da cultura democrática. Eles dependem da eletricidade. Atualmente, os índices de eletrificação do continente africano ainda são muito baixos. Essa é uma lição convincente do Nkrumah: não se pode construir a democracia sem eletricidade, não se pode construir o pan-africanismo sem eletricidade.
O post Livro discute legado de Kwame Nkrumah para a união africana: ‘Temos de olhar para nossos próprios visionários’ apareceu primeiro em Brasil de Fato.