Por um bom tempo, entre 2016 e 2021, o prédio da Fundação de Ciência e Tecnologia do Estado (Cientec) teve como únicos moradores gatos abandonados. Os felinos ali continuam, mas o prédio, localizado entre a avenida Loureiro da Silva e a rua Washington Luís, em Porto Alegre, mais as instalações de Cachoeirinha, foram cedidos pelo governo para uso da Universidade Estadual do RS (Uergs).
O processo de fim de um órgão de excelência, pesquisa, análises químicas, reconhecido nacionalmente, começou no governo de José Ivo Sartori e foi concluído no primeiro governo de Eduardo Leite depois de passar por ações e análises da Assembleia Legislativa, Procuradoria Geral do Estado, Justiça, servidores.

O engenheiro químico Júlio César Trois Endres foi funcionário da instituição desde 1981, e acaba de lançar o livro Era uma vez uma Fundação… Nesta maratona de discussões, o autor viaja pelas idas e vindas do processo de encerramento da Cientec. No dia em que foi fechada para novos serviços (novembro de 2017), ela tinha mais de 1.300 clientes ativos, realizando serviços para a indústria gaúcha.
“Com a função e a necessidade de arrecadar para pagar as contas do condomínio, vale alimentação, estagiários e investimentos, entre outras coisas, a Cientec se tornou um importante prestador de serviços, ensaios, calibrações e inspeções. Atendíamos diversos setores da economia, como empreiteiras, indústrias de alimentos de todos os subsetores, indústrias químicas, eletroeletrônicas, condomínios, eletroeletrônica, alimentação, construção civil e geotecnia, entre outras”, relata Júlio. “Tínhamos diversos laboratórios acreditados pelo Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia)”, conta.
A extinção foi aprovada pela Assembleia Legislativa em dezembro de 2016, como parte de um pacote de medidas para reduzir custos e despesas estaduais. A toque de caixa, como são os projetos analisados pelos deputados aos finais de ano.

Entre 2017 e 2022 ocorreram, de forma cronológica, demissões de alguns funcionários, adesão de outros a planos de demissão voluntário, transferência de um grande número de profissionais para diversas secretarias. Antes da extinção, a Cientec tinha 240 funcionários. Hoje são 167 funcionários ligados à Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia e 50 funcionários que seguem nos prédios da instituição extinta via decisão judicial, mas que não podem e não tem como exercer suas funções. Pagos, mas sem nenhum trabalho.
Por fim, a baixa na Receita Federal do CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas) em abril de 2022, ano em que a Fundação de Ciência e Tecnologia do Estado completaria 80 anos de atuação. “Fim triste e melancólico”, diz Júlio.
Patrão
Para Júlio, “curiosamente, muitos dos funcionários foram transferidos à Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia, que era o mandante e patrão da Cientec. Dono que, pelo visto, não se importou em perder seu mais importante braço. O binômio ciência & tecnologia, associado à Cientec desde sua criação, antecedeu em décadas a criação de uma secretaria voltada ao tema e que, identificada ao longo dos anos de diversas formas, nasceu como Secretaria de Ciência e Tecnologia em 1987”, recorda.
O prefácio é outra novidade no livro de Júlio. Foi escrito, digamos, psicografado ou obtido por inteligência artificial, pelo pai falecido (Júlio Colfosco Endres, ex-contabilista, ex-advogado, ex-economista), uma homenagem do filho. Ali, é contada a história do autor do livro, suas conquistas, sua trajetória, seus passeios e seus estudos.
Outro detalhe interessante da obra foi mostrar as enchentes de maio de 2024, com muitas fotos do antigo prédio da Cientec, hoje da Uergs, na Cidade Baixa. As águas tomaram conta do local (1m80cm) em frente à guarita de acesso ao local. Muito material, fichários, livros, móveis, foram perdidos e descartados.
Para Júlio, a ausência de um planejamento adequado da extinção provocou sucateamento dos laboratórios tecnológicos que possuíam equipamentos sofisticados que demandavam conservação, climatização, instalação, transporte e reinstalação especializada. Ele também foi guia de uma visita de deputados. Era, na época, gerente do Departamento de Química e PhD na área.
“Em maio/junho de 2018, eu e mais três colegas fomos exonerados dos cargos de gerentes, mas fomos encarregados de zelar, guardar e fazer a manutenção de todos os equipamentos dos oito departamentos de produção (cada um com dois departamentos). A manutenção foi feita com a ajuda de muitos dos funcionários que já haviam sido transferidos. Assim, ficamos de zeladores e guardiões dos equipamentos até abril de 2022, quando a baixa do CNPJ foi finalmente protocolada”, relembra o autor. “Muitos dos equipamentos, após quase seis anos parados perderam a serventia. Em alguns casos a obsolescência é rápida e a manutenção cara ou impossível”, lamenta. Para ele, é simplesmente estarrecedora a situação da Cientec.
Quem é o autor

Júlio nasceu em Canoas e mudou-se para Porto Alegre em 1977. Graduou-se em Engenharia Química pela PUCRS – formou-se na primeira turma em 1980 – e pós-graduou-se como PhD em Engenharia Química (área de processos de separação) em 1994 pela Universidade de Manchester (Inglaterra). Trabalhou no antigo Departamento de Meio Ambiente (atual Fepam) da Secretaria Estadual da Saúde e depois começou a sua carreira na Cientec em 1981, onde ficou até 2022, quando foi dada baixa do CNPJ da Fundação. Desde então, trabalha na Secretaria de Inovação, Ciência e Tecnologia, mas não abandonou o prédio da Cientec.
“Vou ao prédio da Fundação até cinco vezes por semana dar comida para os gatos que ali continuam. Uma moradora da região também ajuda na tarefa. Um destes gatos levei para casa, o Bob.”
Fundação de Ciência e Tecnologia

A Cientec possuía 11.600m² de área construída, distribuídos em 12 prédios, 21 departamentos e 16 laboratórios em Porto Alegre, além de um campus com 72 hectares, 6.200m² de área construída distribuídos em cinco prédios, quatro departamentos e 11 laboratórios no Distrito Industrial de Cachoeirinha.
A Cientec foi sucessora do Instituto Tecnológico do Rio Grande do Sul (ITERS). Em 1942, num país sacudido pela Segunda Guerra Mundial, em que pelo menos 15 navios brasileiros foram afundados pela marinha alemã, o Interventor Federal no Estado Osvaldo Cordeiro de Farias sancionou o Decreto Lei nº 282 que criava o Instituto Tecnológico do Rio Grande do Sul.
Em 1946, no mês de fevereiro, o ITERS foi reorganizado como autarquia estadual, a primeira do Rio Grande do Sul. Em 1952, submetido às normas do Serviço Público pela Lei Estadual 2020, o ITERS perde sua autonomia e tem diminuída sua agilidade. Em 1970, frente às dificuldades enfrentadas como autarquia, iniciaram-se os estudos que iriam transformar a autarquia em fundação pública de direito privado sob uma nova denominação.
Em junho de 1972 é autorizado o Poder Executivo pelo Decreto Lei 6.370/72 a instituir uma fundação para “estudo e aplicação de métodos científicos e tecnológicos na solução de problemas peculiares de entidades privadas e governamentais para estimular o crescimento econômico do Rio Grande do Sul e do país.”
Em setembro de 1972, os funcionários e o patrimônio do ITERS foram colocados à disposição da recém-criada Fundação de Ciência e Tecnologia, passando a ser o “laboratório e consultoria técnica oficial do estado”, conforme seu primeiro estatuto, com maior autonomia administrativa.

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