A inteligência artificial já é regulada — só que não por você

O Brasil de Fato RS publica hoje mais um artigo de uma série sobre desinformação, fenômeno que desafia a integridade do debate público e afeta a democracia, a ciência e os direitos humanos. A publicação é fruto de uma parceria com o Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict), o International Center for Information Ethics (ICIE), e a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD).

Imagine que você mora em um prédio. Mas não foi você quem escolheu o síndico, nem conhece o zelador com quem compartilha os corredores. Todas as regras do condomínio, desde o horário das luzes, o funcionamento dos elevadores, o uso das câmeras de segurança até a distribuição da água, são definidas por uma empresa estrangeira que você nunca viu pessoalmente. Essa empresa coleta dados sobre seus hábitos: que horas você sai, com quem você conversa no elevador e até se você dormiu bem, com base no padrão do seu toque na maçaneta.

Um dia, você descobre que todas essas informações, inclusive dados íntimos, foram parar nas mãos de uma farmácia que decidiu comprar seu “perfilamento”. Seus horários, suas conversas, sua rotina, até imagens suas, tudo foi vazado, comercializado ou usado em decisões que você nunca autorizou. Um vizinho te conta que recebeu um anúncio estranho sobre medicamentos, baseado em informações da sua geladeira inteligente. E há semanas alguém comenta no grupo do condomínio que o “algoritmo” previu que você não pagaria o aluguel do mês que vem.

Com razão, você se revolta. Com certeza pensaria em chamar a polícia, acionar a justiça, pedir uma reunião de condomínio, exigir seus direitos. Mas, nesse prédio, nada disso é possível.

O síndico mora em outro país, pois na verdade é um supervisor que gerencia dezenas de prédios ao mesmo tempo usando um “algoritmo”. E, por contrato, a empresa que gerencia tudo não responde às leis locais. Ela não pode ser intimada judicialmente aqui, não comparece às assembleias e se comunica apenas por notificações do chatbot no aplicativo.

O que poderia ser apenas mais um episódio de The Black Mirror, na verdade não está tão distante do que já ocorre em nossa vida sob os sistemas de inteligência artificial (IA) operados por grandes empresas tecnológicas. Elas já regulam o que vemos, o que consumimos, o que pensamos que escolhemos. E o mais grave: essa regulação não passa por nenhuma instância pública ou democrática, ela é feita de forma privada, opaca e distante.

A IA já é regulada – por quem a controla

Plataformas como OpenAI, Meta, Google e Microsoft tomam decisões constantes sobre o que seus sistemas podem ou não fazer. Elas definem, por conta própria, o que será considerado perigoso, inaceitável, verdadeiro ou impreciso. Com base em critérios opacos, decidem quais conteúdos ganham visibilidade e quais serão ocultados, quais usos são liberados e quais devem ser bloqueados. São decisões de grande impacto, tomadas de forma centralizada, sem qualquer processo democrático. Não passam por consulta pública, não estão sujeitas à legislação brasileira e não levam em conta os contextos culturais, sociais e econômicos do nosso país.

Essas empresas frequentemente afirmam que seguem diretrizes éticas e que a tecnologia está sendo conduzida com responsabilidade. No entanto, a governança real dessas plataformas é limitada. Criam conselhos consultivos de ética e responsabilidade, mas com poder fictício, muitas vezes meramente simbólico. Divulgam relatórios de impacto, mas esses documentos são elaborados por elas mesmas, com pouca transparência sobre a metodologia e sem mecanismos independentes de auditoria por parte da sociedade civil ou de autoridades reguladoras locais.

Enquanto alguns ainda associam a regulação da inteligência artificial pelo Estado a ideias como censura, engessamento ou limitação da inovação, a verdade é que a IA já está sendo regulada. Ela é moldada por quem a desenha, por quem a financia e por quem define seus parâmetros técnicos, comerciais e éticos. Na prática, é como viver em um condomínio sob leis criadas por estrangeiros, sem voz, sem voto e sem recurso.

Não basta uma regulação jurídica – é preciso investimento em infraestrutura

R$ 1.272.555.777,49 foi o valor do contrato firmado entre a Microsoft e o Governo Federal brasileiro entre 26 de outubro de 2023 e 31 de janeiro de 2025. Esse montante se refere apenas ao que o Poder Executivo pagou, sem considerar contratos de outros entes, o Ministério Público e diversas outras instituições públicas. O destino desse investimento foi, em parte, a contratação de serviços de computação em nuvem, uma infraestrutura crítica que muitas vezes serve de base para o funcionamento de sistemas que mediam a prestação de serviço para políticas públicas. Em outras palavras: se não pagarmos o aluguel com o valor de impostos arrecadados, políticas públicas podem ficar em risco de serem prejudicadas, já que são serviços como os da Microsoft que intermediam a possibilidade de oferta dessas políticas públicas no país.

Para deixar o cenário ainda mais preocupante, o governo brasileiro, por meio do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, apresentou, no início de maio de 2025, a proposta de isenção de impostos para que as Big Techs construam data centers no Brasil. É como se, além de pagarmos o aluguel caríssimo para morar em um prédio que não é nosso, ainda estivéssemos defendendo um desconto generoso no IPTU para o dono do prédio. Na prática, continuamos sem acesso às chaves, sem poder nas decisões e, de quebra, ajudando quem lucra com nossa dependência.

Esse contrato, dentre tantos outros também com Big Techs, escancara a profundidade da dependência tecnológica do Brasil. Estamos pagando caro por tecnologias que não desenvolvemos, que não controlamos e que, muitas vezes, não respondem aos nossos interesses sociais, econômicos ou estratégicos. Trata-se de uma relação assimétrica em que o país atua como cliente passivo, enquanto as decisões técnicas e comerciais continuam sendo tomadas no exterior.

Diante desse cenário, a regulação é urgente e inegociável. Projetos como o PL 2630/2020, voltado à responsabilização das plataformas digitais, e o PL 2338/2023, que trata do marco legal da inteligência artificial no Brasil, são passos centrais para que possamos estabelecer limites públicos e garantir direitos mínimos no uso dessas tecnologias. Mas é preciso reforçar: essa é apenas uma parte da caminhada, não o ponto de chegada. Regulamentar o uso de IAs majoritariamente estrangeiras no Brasil é como fiscalizar o que os outros fazem no nosso quintal.

O que queremos, no entanto, é muito mais do que isso. Queremos o nosso próprio prédio, com projeto arquitetônico pensado a partir da nossa realidade. Queremos um data center brasileiro e sustentável, uma inteligência artificial brasileira e plural, uma ciência e tecnologia com financiamento contínuo, voltadas às nossas urgências e valores. Nem a IA dos Estados Unidos da América, nem a IA da China, apenas. O que precisamos é de soberania tecnológica com investimento em infraestrutura, para que o Brasil não seja apenas cliente ou colônia digital, mas protagonista da sua própria transformação. Caso contrário, qual será o reajuste do próximo aluguel?

*Ergon Cugler é graduado e pós-graduado pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em administração pública e governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Associado ao programa de pós-graduação da Universitat de Barcelona. Atuou como pesquisador do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), onde contribuiu com a estratégia nacional de enfrentamento à desinformação. Atualmente pesquisador CNPq vinculado ao Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Pública (DesinfoPop/FGV). Membro do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, o qual representa na Coalizão Direitos na Rede (CDR), na Sala de Articulação contra a Desinformação (SAD) e na Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCD). [email protected].

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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