A revolução da simplicidade

O comportamento humano é constituído das mais diversas características. Grande parte delas geralmente permeada pelo sistema hegemônico que organiza e determina a sociedade: o capitalismo. Nesse cenário, o individualismo e o personalismo desempenham papeis centrais nas relações sociais. E quando falamos dos espaços políticos de atuação, tais (des)valores são razoavelmente tranquilos de constatar. Como todo estado das coisas, tal cenário não pode ser compreendido como uma totalidade da realidade, ou seja, não representa um padrão absoluto de conduta.

Por diversas razões que não vem ao caso é possível observar exemplos que representam a antítese dos valores já apontados aqui. Somos frequentemente expostos às mais variadas situações que nos oferecem acúmulos diversos e formadores da personalidade que nos constitui, dessa forma, ocasionando diferentes comportamentos. Como já mencionado, quando observamos o campo da disputa política a atuação humana apresenta muitas vezes exemplos ainda mais nítidos de comportamentos antagônicos, ainda que estejamos falando do mesmo espectro ideológico, pois é nessa arena que as fragilidades de formação política se manifestam com mais veemência.

Essas breves linhas introdutórias nos ajudam a perceber determinadas nuances da realidade que muitas vezes passam desapercebidas. Isto é, em dadas circunstâncias a indicação de elogios a um determinado comportamento muitas vezes revela uma contradição como plano de fundo. Um exemplo que parece cristalino: recentemente perdemos uma grande liderança do chamado campo progressista com reconhecimento nos mais variados lugares do mundo: o fraterno e sempre presente uruguaio Pepe Mujica.

Para além de outros aspectos, sua vida cotidiana simples, mas jamais simplória, tornou-se uma marca. Um canto aos ouvidos de quem acredita que a luta por um outro mundo, com sustentabilidade e profunda harmonia e fraternidade entre os seres vivos, somente é possível a partir da compreensão de que determinados valores são imprescindíveis, e aqui me refiro à sincera simplicidade em sua compreensão mais profunda. Ou seja, a partir de fatores pedagógicos que lhe constituem como um todo: a linguagem que acalenta o coração e dialoga com os mais oprimidos, o desprezo pelo consumismo desenfreado típico do capitalismo, a lucidez sobre as causas das desigualdades sociais e a natural vontade de estar com os trabalhadores em uma perspectiva íntima, familiar. 

Essa simplicidade que me refiro é aquela mais subversiva e revolucionária contra o sistema, uma vez que está amparada pela pedagogia do exemplo e rompe com a lógica dos capitais simbólicos como instrumento de hierarquização entre os indivíduos. Melhor tradução de minhas palavras encontramos na reflexão do libertador cubano José Marti: “Toda glória do mundo cabe num grão de milho”.

Esse breve texto seria totalmente dispensável e quiçá insignificante não fosse a realidade que salta aos olhos: a simplicidade tratada aqui tornou-se isolada, tanto assim que a sua própria exaltação se dá justamento no escopo de sua escassez.  Tal cenário revela uma contradição que em grande medida fulmina com os anseios de projetos políticos que passam pela mobilização popular até as disputas eleitorais. Sem a superação de obstáculos típicos do capitalismo a esquerda estará fadada ao insucesso de suas lutas. Nesse sentido, um dos maiores desafios é construir um processo coletivo de luta popular no qual determinados atributos como a simplicidade descrita aqui não seja mais motivo de exaltação, mas apenas uma expressão da normalidade comportamental coletiva.

Lutemos para que os poucos exemplos que temos hoje inspirem e se multipliquem como um verdadeiro farol de referência e deferência das melhores atitudes no caminho de atuação de cada militante progressista. Descobrir a riqueza e o encantamento de viver e conviver nos territórios talvez seja o caminho mais curto para semear e colher os melhores frutos.  

*Fabiano Negreiros é militante comunitário.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha do editorial do jornal Brasil de Fato.

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