
Ministério Público da Paraíba pediu afastamento de três diretores da Abrace. Associação paraibana é uma das primeiras autorizadas a cultivar maconha para fins medicinais. Diretoria nega irregularidades. MP pede saída de diretoria de associação que produz cannabis medicinal
O Ministério Público da Paraíba (MPPB) pediu à Justiça o afastamento de três diretores da Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace) por suspeitas de irregularidades na administração da entidade. A Abrace é uma organização sem fins lucrativos e foi uma das primeiras instituições autorizadas a cultivar maconha para fins medicinais no país.
O g1 teve acesso à ação civil pública que o MPPB ajuizou em 28 de maio e mostra por que o órgão quer a substituição da atual diretoria por um interventor que terá, em 12 meses, a missão de reestruturar a entidade e auditar as contas. Nela, o órgão descreve privilégios de diretores, cita nepotismo, questiona gastos de quase R$ 1 milhão e narra desrespeitos trabalhistas. (veja abaixo).
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Em nota, a Abrace disse ter ficado surpresa com a ação do MPPB. A direção declarou que a ação foi construída sem considerar dezenas de documentos, registros contábeis e manifestações formais apresentados anteriormente à própria promotoria, que demonstram a integridade da atual gestão. A associação disse ainda que se tornou uma entidade com recursos próprios, sem receber verba pública, subvenção estatal ou repasse de fundo público.
🔎 A Abrace começou em 2014 na casa de Cassiano Gomes, um dos diretores, com produção de cannabis autorizada pela Justiça, para tratar a própria mãe. Em 2017, a Justiça Federal na Paraíba permitiu a atividade da Abrace que, à época, atendia 151 pacientes. Hoje, são 50 mil pacientes associados atendidos com os medicamentos da instituição em todo o Brasil e produção de 5 mil frascos de óleo de cannabis por dia.
Os dirigentes seguem no comando da associação, já que este é apenas um pedido do Ministério Público à Justiça, que deverá julgar o mérito das alegações.
Veja ponto a ponto do pedido do Ministério Público:
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Divulgação/Abrace
“Nepotismo”
O promotor de Justiça que assina o pedido, Alexandre Jorge do Amaral Nóbrega, citou “nepotismo e aparelhamento institucional” na instituição. Segundo a ação, uma das testemunhas ouvidas na apuração relatou que a atual presidente da instituição, Viviane Nunes Machado, cunhada de Cassiano Gomes, se limita a apenas a assinar documentos de interesse dos diretores. Viviane, Cassiano e a mulher dele, Camila Coelho são os dirigentes que o MP quer afastar.
O g1 procurou os dirigentes que são alvo do pedido. Viviane Machado não enviou resposta até a publicação desta reportagem. Cassiano e Camila Moraes repassaram o contato da assessoria de imprensa da instituição, que informou que a resposta sobre os pontos levantados pelo MP era a nota emitida pela associação.
“Alheamento” da presidência
“(Viviane Machado) restringia-se à assinatura de documentos previamente definidos pelo casal gestor, sem qualquer questionamento ou análise”, apontou o MP em trecho da ação. Em outro ponto das considerações do promotor, ele afirmou que a presidente Viviane Machado revelou, em depoimento, “completo alheamento quanto às rotinas administrativas e financeiras da entidade”.
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Salário de R$ 35 mil
Um exemplo citado pelo promotor para ilustrar o nepotismo envolve um pedido de ajuda de custo feito pela presidente Viviane Machado ao setor financeiro da associação. Ela solicitou apoio para cobrir despesas com transporte, sendo atendida com o valor de R$ 2.900, oferecido pela Abrace para esse fim. Em contraste, o diretor Cassiano, por decisão própria, recebia mensalmente R$ 35 mil em salário mensal. O promotor Alexandre Jorge do Amaral destaca que essa disparidade, mesmo que os valores sejam relativos, respectivamente à ajuda de transporte e salários, é um indício de desequilíbrio na distribuição de recursos entre os cargos diretivos e o esvaziamento prático da função da presidência.
Acúmulo de funções
A mesma testemunha afirmou ao Ministério Público que a diretora-administrativa da Abrace, Camila Coelho, acumula funções sem formação técnica especializada. O texto afirma que ela é esposa de Cassiano e que alçou aos cargos de comando após começo de relacionamento de ambos. “(A testemunha) apontou, também, que Camila acumulava as funções de tesoureira e diretora administrativa, sem formação técnica compatível com as atribuições exercidas, além de exercer papel decisório absoluto sobre contratações, demissões e atos de gestão”, disse. Outra testemunha ouvida no processo e incluída na peça do MP, com o nepotismo, as decisões da Abrace passam a ser concentradas nas figuras de Cassiano e também de Camila, sem a participação da associação no sentido amplo.
De acordo com o site oficial da Abrace, a diretoria da instituição é formada por seis pessoas que ocupam sete cargos, porque a diretora administrativa Camila Moraes também é a tesoureira. Além disso, e de Viviane como presidente e Cassiano como diretor-executivo, ainda há outras pessoas pessoas identificadas como integrantes do quadro diretivo nas funções de “fiscais”, são eles: Gabriel, Daniela de Oliveira e Josefa Ivanildo. Esses três não foram denunciados pelo MP.
produção de cannabis medicinal na Abrace
ARTE/g1
Computador e drones
No pedido do Ministério Público, o promotor cita um episódio de 2018 para exemplificar o uso pessoal de equipamentos da associação. Uma testemunha afirmou nos autos que computadores, drones e outros aparelhos foram comprados pela associação, mas utilizados pelos dirigentes na vida particular.
“Ao promover um evento beneficente que arrecadou cerca de R$ 8.000,00 em prol da Abrace, os valores foram destinados à aquisição de um computador, o qual foi instalado na residência do Diretor Executivo, contrariando frontalmente a destinação social da verba. Narrou (a testemunha), ainda, que a Abrace passou a realizar aquisições de bens de valor elevado, como drones, que foram desviados para o uso pessoal do gestor, sendo utilizados fora do contexto institucional”, disse o trecho.
Conflito de interesses
Nos autos, a mesma testemunha também afirmou, conforme o documento do MP, relata a criação de uma empresa privada para prestar serviços para associação. A empresa é propriedade de Cassiano Gomes, segundo o processo. “O depoente revelou fato particularmente sensível: o envolvimento direto de Cassiano na criação da empresa Complysoft, supostamente com recursos oriundos da própria associação. Segundo afirmou, a entidade passou a pagar mensalmente pelo uso do sistema Legacy desenvolvido pela empresa de Cassiano, ainda que este houvesse afirmado inicialmente que não haveria cobrança pelo uso da plataforma. Ressaltou que a empresa foi formalmente instituída por Cassiano com tal finalidade, configurando evidente conflito de interesses e violação à moralidade administrativa”, mostrou parte do pedido do promotor.
Compra sem consulta
Ainda houve também a denúncia de que equipamentos foram comprados pela associação e não utilizados. Na ação civil, o MP afirmou que foi realizada uma compra de equipamentos no valor de R$ 11 milhões, sem qualquer consulta aos setores técnicos e com garantia expirada.
Relatório contábil feito pelo MP
Em outra parte do documento, o promotor aponta que a associação teve R$ 985 mil rejeitados em contas, valor referente a despesas consideradas irregulares e, por isso, rejeitadas nas análises do órgão. Esses dados foram apontados por um relatório contábil feito pelo MP durante o processo.
O g1 entrou em contato com o promotor da ação, Alexandre Jorge do Amaral Nóbrega, que explicou que a quantia refere-se ao período de 2016 a 2018 da associação e que “não se refere necessariamente a um desvio de recursos já caracterizado, mas sim a despesas que, segundo a análise técnica, foram consideradas irregulares ou indevidamente justificadas no contexto da aplicação de recursos”.
O promotor ainda destacou que é possível que os valores com despesas irregulares sejam ainda maiores nos anos subsequentes da associação. No entanto, essa análise depende do aprofundamento das investigações.
Questões trabalhistas
Em outra parte do documento do Ministério Público, há o relato de violação de direitos trabalhistas e informalidade. Em um dos pontos, o promotor trata como “terror psicológico” algumas atitudes que teriam sido tomadas pela diretoria. O fato foi relatado por uma ex-funcionária. “A depoente narrou que, no retorno de seu período de férias, foi demitida sem justa causa, juntamente com seu esposo e outros funcionários, compondo um quadro de retaliações institucionais que, segundo suas palavras, envolveu aproximadamente 25 desligamentos recentes. Esse contexto de perseguição foi descrito como “terror psicológico” imposto pelos dirigentes máximos da entidade”, disse o promotor.
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Diogo Almeida
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Além da nota emitida pela associação logo quando se tornou público o pedido do Ministério Público, o diretor executivo Cassiano Gomes também se posicionou pessoalmente nas redes sociais. Ele alegou , em posicionamento emitido na semana passada, que as denúncias são feitas por antigos funcionários e dirigentes que “foram desligados e processados”. Ele também afirma que essas pessoas “tentam utilizar o Ministério Público para ter o controle da associação”. O diretor afirmou também que nega as acusações.
“(A associação) hoje é transparente, auditada e tem suas contas aprovadas pelos próprios associados. Desde 2023 promovemos uma profunda reestruturação, a gente já convidou o Ministério Público Estadual para vir, fiscalizar, mas não foi acolhido. Implantamos a política de compliance, contratamos auditoria independente, fortalecemos processos internos e aumentamos o controle social. Todo esse esforço foi feito por um único objetivo: garantir a qualidade e que a Abrace continue sendo da comunidade, dos pacientes e não de interesses comerciais ou políticos”, ressaltou.
Em outro ponto do comunicado, ele diz que trabalha para manter a associação viva para ajudar a causa da cannabis medicinal, que segundo ele, sofre com grande preconceito da sociedade.
“A gente sabe que a cannabis medicinal ainda sofre preconceito, mas o que está em jogo aqui não é a planta, são vidas, são crianças com epilepsia, idosos com Alzheimer, pacientes de câncer, autismo, que melhoram com o tratamento e é por eles que estamos aqui. Existindo com serenidade, com documentação, com verdade, queremos a justiça, veja, não há urgência, não há crise, não há desvio, há sim um trabalho sério sendo feito por quem vive essa causa de dentro”, ressaltou.
Ele ainda fez um convite ao Ministério Público para participar do cotidiano da associação, se colocando à disposição para mostrar a contabilidade da instituição.
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