Mulheres negras representam menos de 2,2% das pessoas com ensino superior em Sorocaba, aponta IBGE; veja gráfico


Das 135.543 pessoas com ensino superior completo na cidade, apenas 2.977 correspondem às mulheres negras. Sociólogo aponta racismo estrutural, exclusão social e sexismo como uma das principais causas da baixa estatística. Bruna Rita é estudante de marketing
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Sorocaba (SP) possui 135.543 pessoas com o ensino superior completo. Deste número, somente 2,2% correspondem às mulheres negras – representando um total de 2.977 pessoas. Os dados foram divulgados no Censo 2022, elaborado pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE).
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Neste caso, a comunidade negra fica à frente dos amarelos – aqueles que possuem algum tipo de ascendência asiática -, que, combinados homens e mulheres, representam 2%. Já os indígenas aparecem com uma estatística ainda menos expressiva, com 0,1%.
Todos os números são consideravelmente menores quando comparados às pessoas brancas. Se divididos entre homens e mulheres, eles representam, respectivamente, 45,1 e 34,6%. Veja o gráfico abaixo.

‘Únicas pretas da turma’
Fernanda Narciso tem 43 anos e decidiu entrar na faculdade para cursar direito ainda nos anos 2000. À época, os projetos do governo para garantir uma maior acessibilidade ao ensino superior, como o Programa Universidade para Todos (ProUni), não existiam.
“Eu tive uma vantagem social maior comparada às mulheres pretas, pois meus pais conseguiram pagar meus estudos sem recorrer às bolsas. Em uma turma onde aproximadamente 50 alunos se formaram, eu e minha amiga éramos as únicas negras formandas. Essa era a média da presença de mulheres negras por classe”, conta.
A advogada vê os 2,2% como uma forma de questionar a efetividade das políticas que procuram aumentar o acesso da comunidade ao ensino superior. Para ela, a universidade pode ser considerada um ambiente elitizado e, às vezes, intimidador.
Hoje, Fernanda é advogada
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“O protagonismo nas atividades da faculdade era sempre branco. Sei que isso é um fator que intimida as pessoas pretas que, muitas vezes, sentem dificuldade em sentir o pertencimento ao local. Eu fui preparada desde a infância para vivenciar e me ambientar com esse espaço, já que a minha mãe foi uma mulher negra no ensino superior ainda nos anos 1970. Se eu passei por desafios, ela teve de forma multiplicada”, explica.
Durante toda a trajetória acadêmica, Fernanda sente que teve muita dificuldade para encontrar um estágio, se comparada aos alunos brancos. Ela conquistou somente no último ano e o local ainda não era remunerado.
“Eu entrei no Ministério Público no final da minha graduação. Era indispensável para concluir o curso, mas acredito que as alunas brancas tiveram mais facilidade em conseguir algo remunerado. Por causa disso, muitas mulheres acabam desistindo do sonho de obter um diploma, pois além dos estudos, precisam ajudar no sustento familiar”, lembra.
Mesmo com o número baixo, a mulher acredita que a sociedade está caminhando em passos pequenos para uma transformação mais efetiva. De acordo com ela, os programas e incentivos governamentais são importantes, mas mantê-los na formação ainda é um desafio.
“É uma triste realidade, mas, desde 2010, as políticas de inclusão têm ajudado a caminhar com passos tímidos. As cotas raciais são essenciais, mas a necessidade vai além. Hoje em dia, colocar uma pessoa preta na sociedade é mais acessível, mas fazer ela ficar é um desafio ainda maior, se levarmos em conta o contexto social dela, a forma de acolhimento e de posicionamento da instituição, que nem sempre está preparada para garantir o respeito à diversidade”, opina.
Racismo estrutural, exclusão social e sexismo
Vidal é sociólogo e professor universitário
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O professor universitário Vidal Mota, que é doutor em ciências sociais e mestre em sociologia política, vê o baixo destaque acadêmico e profissional como uma reflexão da estruturação desigual da sociedade. Segundo ele, muitas delas são obrigadas a conciliar diversos âmbitos da vida para conseguir sobreviver.
“Nós podemos falar do racismo estrutural, da exclusão social e do sexismo presente na sociedade brasileira. As mulheres negras enfrentam uma sobreposição de barreiras, de classe, de raça, de gênero. Muitas delas, por conta da baixa renda, enfrentam uma jornada tripla de trabalho e tentam equilibrar o estudo, o trabalho, a responsabilidade de cuidados. Uma falta de apoio pode deixar tudo ainda mais difícil”, pontua.
O sociólogo ainda expressa que o perfil universitário tem a tendência de favorecer os mais privilegiados de forma socioeconômica e, por isso, a experiência acadêmica das estudantes negras pode ser impactada de forma negativa.
“Embora as políticas de cota possibilitem a inclusão da população negra no ambiente universitário, muitos elementos do elitismo ainda persistem. O modelo educacional que temos não se adapta à realidade social dos estudantes e isso reflete diretamente nos estudantes baixa renda, atrapalhando o seu desenvolvimento. São muitas barreiras”, diz.
Vidal segue a linha de raciocínio pontuando outros problemas recorrentes na sociedade brasileira e, consequentemente, no cotidiano negro. Mesmo com políticas que possuam o objetivo de compensar algum tipo de dano, os obstáculos ainda são notáveis.
“Outros grupos sociais ‘largam’ à frente dos negros. Enquanto eles estão cuidando dos filhos de famílias brancas, eles não têm a possibilidade de serem cuidados, de ocupar outros espaços. Isso está presente na cultura, na prática cotidiana. A estrutura impede que as mulheres negras cresçam socialmente, mesmo quando há políticas compensatórias. É um problema profundo com uma certa dificuldade de ser superado”, lamenta.
Mais de 40% dos lares da região de Sorocaba são chefiados por mulheres
Ao g1, o professor reforça que a marginalização educacional não acontece somente em Sorocaba ou no país e, sim, em uma escala intercontinental. No entanto, a diferença está na forma que cada um dos países lida com a problemática.
“Nos Estados Unidos, há estudos que mostram que as mulheres negras estão entre os grupos mais afetados pela violência, desemprego e falta de acesso à saúde. No Brasil, há um silêncio institucional e uma negação da existência do racismo, que deixa o problema ainda pior. A política de cotas existe e dá certo, mas não garante permanência. Há muito o que ser feito ainda”, reflete.
“O racismo está muito presente, inclusive, na representatividade entre os docentes e na invisibilidade de pesquisadores. Há também uma certa resistência a conteúdos afrocentrados, às vezes, ao trabalhar com um componente, as pessoas acreditam que é ‘militância’, e não científico, pois vem de autores negros. Isso cria uma solidão, uma falta de representatividade para o estudantes negros”, completa.
Na visão de Vidal, o estigma com os estudantes universitários que precisam de algum apoio para continuar investido na educação é muito forte e, por conta disso, a evasão pode acabar acontecendo. Entrar na faculdade é fundamental, porém, permanecer é ainda mais.
“Se não houver programas que garantam, como alimentação e moradia, o risco da evasão é real. Eu falo porque, se não fossem esses programas de apoio, eu não teria conseguido me manter em um curso integral na universidade pública. Nós sofremos um preconceito muito grande quando precisamos de apoio. Os negros são sempre os suspeitos, sempre tratados de forma enviesada. Nós temos que apoiar a produção científica dessas pessoas, ampliar os diálogos com os movimentos sociais. A evasão existe e tem um risco alto”, explica.
‘Ser negra e estudar é um ato político’
A estudante de marketing Bruna Rita do Nascimento, de 24 anos, diz não estar surpresa com o número de mulheres negras com um diploma superior. Além dos problemas já citados por Fernanda e Vidal, ela complementa com a maior taxa de gravidez precoce entre o grupo mencionado, o que pode acabar dificultando a conciliação da rotina.
“Não podemos ignorar os dados que apontam para uma taxa maior de gravidez na adolescência entre meninas negras, consequência de uma série de desigualdades sociais, falta de acesso a políticas públicas, educação sexual e saúde. Ela é, na verdade, um retrato fiel de como o racismo estrutural impacta diretamente o acesso e a permanência de mulheres negras no ensino superior”, compartilha.
Bruna conta que sua entrada no universo acadêmico foi repentina e em um momento da vida onde ela estava “a ver navios”. Mesmo estando feliz com o curso que escolheu, ela afirma viver dificuldades recorrentes, como a distância para chegar até a instituição em dias presenciais.
Bruna vê como um ato político ser negra e estudar
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“Apesar de morar em Sorocaba, minha faculdade é na capital. Estou desempregada, em busca de um estágio. Muitas vezes, não consigo participar das aulas presenciais, palestras e eventos por conta da minha condição financeira. Claro que existe um planejamento financeiro, mas, geralmente, as atividades são comunicadas de última hora. A falta de recursos acaba me impedindo estar em momentos importantes para meu desenvolvimento acadêmico, networking e construção de carreira”, detalha.
Durante toda a trajetória acadêmica, a estudante reconhece que o racismo ainda persiste na sala de aula, principalmente de forma velada. Quem não vive a realidade, acaba passando pelas situações de forma despercebida.
“Está nos olhares, nas suposições, nos questionamentos sobre ‘como você conseguiu estar ali’, na falta de representatividade entre alunos e professores. Somos subestimadas e colocadas à prova como se precisássemos o tempo todo. Não dá para ignorar que a própria estrutura não foi pensada para nos acolher. Quando olhamos para o lado e quase não vemos pessoas pretas, já fica muito claro que o racismo é sim um fator que impacta o acesso e a permanência”, opina.
“Infelizmente a cor da pele influencia e muito. Porque a sociedade inteira foi construída pra nos colocar em situações de desvantagem. E quem não entende isso, não entende como o racismo funciona na prática”, lamenta.
Para Bruna, sua principal motivação ao entrar no ensino superior é poder permitir a abertura de portas para que outras pessoas negras estudem. Mesmo passando por situações dificultosas, ela enxerga todo o período universitário como enriquecedor.
“Eu vou ficar imensamente feliz em fazer parte dessa pequena estatística. Isso vai além de ter um diploma e dar orgulho aos meus pais. É também sobre honrar a história dos meus ancestrais, que sonharam, lutaram e acreditaram em um futuro onde eu pudesse existir, ocupar espaços, estudar e construir minha própria história sem medo. Estar na faculdade é um ato político, de resistência e de afirmação. É a prova viva de que nós podemos ocupar todos os lugares que sempre tentaram nos negar”, finaliza.
Bruna explica que passou por dificuldades socioestruturais
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*Colaborou sob supervisão de Gabriela Almeida
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