Cidadania italiana: o que interessados no documento vão fazer a partir de agora

Passaporte italiano. Foto: Canva Pro

O Brasil tem cerca de 32 milhões de descendentes de italianos, que até 27 de março podiam reconhecer sua cidadania mesmo que o antepassado nascido na Itália fosse de gerações muito anteriores, como tataravós. Depois da aprovação da lei que restringe o reconhecimento da cidadania italiana a filhos e netos de italianos sem dupla cidadania, poucos brasileiros permanecem com esse direito.

O decreto-lei do governo italiano foi aprovado pelo Senado e pela Câmara dos Deputados e publicado pela Presidência na última semana.

Agora, o caminho para aqueles que foram excluídos da lei será entrar com ações judiciais na Itália, dizem os advogados. Mas esta alternativa pode não ser, neste momento, a ideal para todos os ítalo-descendentes, até porque não há mais a mesma segurança de antes com relação ao resultado dos processos judiciais.

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Continuam com o direito de reconhecer a cidadania italiana, conforme a nova lei aprovada, brasileiros que têm um dos pais ou avós nascidos na Itália e não tenha dupla cidadania.

  • Ou seja, a regra engloba as duas gerações de descendentes de italianos que imigraram para o Brasil e não se naturalizaram como brasileiros.

Para italianos com dupla nacionalidade, há uma exceção em que é possível passar a cidadania para o filho. Isso ocorre caso o pai tenha morado por dois anos seguidos na Itália depois de adquirir a cidadania e antes do nascimento do filho.

Filhos menores de idade também têm maior facilidade para adquirir a cidadania, mesmo após o decreto. Em uma regra de transição, até 31 de maio de 2026 os pais italianos (mesmo com dupla cidadania ou que já tenham protocolado o pedido de cidadania até 27 de março) podem declarar o interesse em que seus filhos menores sejam reconhecidos como italianos.

Mas e quem não se encaixa nesses critérios?

As possibilidades ficaram agora bem mais escassas, tirando o direito da maioria dos brasileiros que iam atrás do reconhecimento da cidadania italiana. Mas especialistas apontam um caminho nesses casos: entrar com ações na Justiça italiana alegando a inconstitucionalidade da nova lei.

A nova lei é questionada por diversos juristas especialistas no tema, que argumentam que a norma vai contra o princípio da irretroatividade das leis, definido na Constituição italiana.

  • irretroatividade significa que novas leis não podem retirar direitos já concedidos, podendo atuar só para quem ainda não adquiriu aquele direito.

Na Itália, o princípio ius sanguinis rege a cidadania, ou seja, “filho de italiano, italiano é”, independentemente do país onde o descendente nasceu. Era esse o princípio que garantia a cidadania para tantos brasileiros descendentes de italianos até então.

Dessa forma, como descendentes de italianos já nascem italianos, precisando apenas reconhecer tal direito por questões burocráticas, a avaliação de muitos especialistas é de que a nova lei italiana é inconstitucional.

“A nova lei revoga direitos fundamentais presentes na Constituição Italiana e, inclusive, na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ela ainda produz efeitos retroativos, com a revogação de um direito já consolidado, o que é uma flagrante violação ao princípio de irretroatividade da norma jurídica, excluindo milhões de descendentes do exercício legítimo de um direito constitucionalmente protegido“, avalia David Manzini, fundador e presidente da Nostrali Cidadania Italiana.

Antes, independentemente da forma escolhida para o processa da cidadania italiana – via administrativa ou judicial -, havia um alto grau de segurança de que, se os documentos estivessem corretos e a descendência de um italiano fosse comprovada, a cidadania iria ser reconhecida, ainda que o tempo de espera variasse bastante de acordo com a forma de entrar com o pedido.

Agora, porém, não há mais qualquer previsibilidade ou segurança, já que não existe jurisprudência de casos que entraram com o pedido após a publicação do decreto-lei (em 28 de março) e conseguiram obter a cidadania.

Por isso, é importante que os profissionais que trabalham com cidadania sejam transparentes neste novo cenário, afirma Marina Ferreira, advogada especialista em Direito Internacional atuando no Brasil e na Itália.

“Não é mais um direito previsível. Não há como dizer se os questionamentos serão ou não acolhidos pelos juízes, mas que existem inconsistências jurídicas (na nova lei), existem”, afirma ela.

“Só vamos ter noção mais concreta do ponto de vista da jurisprudência em alguns meses, que é o tempo em que os processos (que questionam a nova lei) vão tramitar e os juízes dos tribunais vão começar a se posicionar”, acrescenta.

Vale a pena entrar com ação agora?

Ferreira recomenda que, para decidir se vale a pena ou não entrar com ação na Justiça, seja feita análise caso a caso.

“Cada caso terá de ser analisado de forma mais individualizada. Casos de famílias cujo grau de parentesco (com o italiano) é muito longe, talvez seja interessante esperar para ver quais serão os próximos passos. Porém, há casos em que vale a pena já entrar com o processo”, avalia.

“Por exemplo: quando o descendente estava na fila do consulado e o agendamento foi cancelado. Vai depender muito da história da pessoa”, explica.

Já Manzini pontua que a vantagem de dar entrada no processo agora é evitar um momento posterior em que o sistema judicial italiano esteja sobrecarregado. “Se todos precisarão solicitar o reconhecimento da cidadania judicialmente, a tendência é que o tempo para o agendamento das audiências aumente”, argumenta o jurista.

Foto: Freepik

Em 24 de junho, haverá um julgamento na Corte Constitucional da Itália que julgará se a lei anterior (que concedia a cidadania a qualquer descendente de italiano) era legal.

“Embora esse julgamento diga respeito a uma lei não mais vigente, vai trazer discussões a respeito do conceito de cidadania e vai nos dar um norte sobre o que os tribunais superiores da Itália entendem sobre isso, e como vão julgar os próximos recursos”, explica Ferreira.

“Estamos em um momento de esperar para ver, mas de não desistir”, completa.

Onde e como dar entrada no processo?

Alguns advogados já estão dando entrada nas primeiras ações contra a inconstitucionalidade da lei italiana. O processo deve ser feito nos tribunais das regiões em que estão localizadas a cidade da Itália onde o dante causa (ascendente italiano nascido na Itália) nasceu.

Segundo Manzini, já foram identificados alguns tribunais em que parece haver mais chance de interpretação sobre a inconstitucionalidade da nova lei.

Porém, não existe a possibilidade de escolher em qual tribunal italiano o processo será tramitado. Isso é definido pela região de nascimento do antepassado, explica Fábio Dias, advogado fundador do FdS Advogados e parceiro da Cidadania4u.

Para entrar com o processo na Itália, é preciso contratar um advogado italiano (incluindo ítalo-brasileiros que atuam no país europeu). Brasileiros podem entrar em contato diretamente com os advogados atuantes na Itália, mesmo sem sair do Brasil, ou contratar uma assessoria brasileira que faz essa mediação.

Quais documentos são necessários?

Os documentos principais são os mesmos de antes do decreto: a certidão de nascimento italiana do dante e de casamento dele, além das certidões de toda a linha sucessória até chegar no requerente. Alguns tribunais pedem também certidões de óbito.

Se houver comprovante de agendamento no consulado ou se a família já estivesse cadastrada na fila há bastante tempo, isso também pode ajudar, segundo Matheus Reis, fundador e presidente da io.Gringo. “Fora isso, a maior prova de documentação de inconstitucionalidade será o próprio decreto”, afirma.

Casos em que parentes que já obtiveram a cidadania italiana, a princípio, não devem beneficiar a análise judicial, na visão de Dias.

Para Manzini, porém, há uma exceção: se esses familiares forem pais, filhos ou irmãos dos requerentes. “Nestes casos, tratamento diferenciado poderia configurar, a nosso ver, discriminação entre sujeitos em idênticas condições e violação do direito à unidade familiar, um dos direitos fundamentais consagrados pela Constituição italiana”, argumenta.

Via judicial

A cidadania italiana, até o decreto entrar em vigor, podia ser reconhecida pela via administrativa (direto na administração pública italiana ou por meio dos consulados italianos no Brasil) ou pela via judicial (contratando advogados que protocolassem ações nos tribunais italianos).

Na Itália, o processo costumava durar cerca de três meses, com os requerentes precisando morar durante todo esse tempo no país. Já por meio dos consulados, o processo levava anos. No Consulado da Itália em São Paulo, a fila chegava a mais de dez anos de espera.

Por isso, era possível entrar com processo judicial na Itália (com o requerente ficando no seu país de origem) alegando a demora da fila dos consulados. Essas ações costumavam levar em torno de três anos.

Outra possibilidade eram as ações nos casos em que o descendente italiano era uma mulher nascida antes de 1948, ano em que a Constituição italiana entrou em vigor igualando as mulheres aos homens, passando a permitir que as italianas transmitam sua cidadania.

Agora, a via judicial fica restrita, basicamente, aos brasileiros que têm algum dos pais ou avós italianos sem dupla cidadania, isto é, que nunca se naturalizaram brasileiros nem nasceram no Brasil.

Para os demais casos, resta a via judicial. “A mudança relevante ocorrerá na estratégia jurídica e na fundamentação da petição inicial. Até então, as ações judiciais tinham como fundamento a excessiva demora nas filas dos consulados italianos ou casos em que a italiana ascendente nasceu antes de 1948. Com a nova legislação, a tese jurídica passará a ser pautada na inconstitucionalidade da própria norma”, explica Manzini.

“Essa é, inclusive, a mesma via já utilizada com êxito no passado para o reconhecimento da cidadania italiana por via materna, quando o legislativo insistia em manter restrições na lei da cidadania italiana, que posteriormente foram declaradas inconstitucionais”, completa.

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