Escola do MST escreve carta para família de Sebastião Salgado: ‘Semente não morre; transforma-se’

Em uma carta pública direcionada a “Lélia, familiares e equipe”, a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), homenageia e agradece Sebastião Salgado, um dos maiores fotógrafos do mundo que morreu na última sexta-feira (23) aos 81 anos.

Escrita por Carlos Bellé em nome da Brigada Apolônio de Carvalho, a carta relembra como a icônica escola do MST, localizada em Guararema (SP), foi erguida na década de 1990 em boa parte por meio da venda do livro Terra, com obras de Salgado.

A campanha aconteceu em reação ao Massacre de Eldorado do Carajás, quando em 1996 a Polícia Militar do Pará assassinou 21 trabalhadores sem-terra que marchavam em direção a Belém. A comoção com o massacre, cujas imagens foram televisionadas, alçou o MST a outro patamar na opinião pública e transformou o 17 de abril em dia internacional de luta pela reforma agrária.

Na época, uma parceria do movimento com Sebastião Salgado e sua equipe organizou a exposição e o livro Terra, reunindo fotografias históricas da luta contra a concentração fundiária brasileira.

Entre as obras selecionadas, está a que eternizou a entrada dos sem-terra, com foices erguidas, pela porteira da fazenda Giacometi, em Rio Bonito do Iguaçu (PR). A ocupação, feita em abril de 1996, tinha sido até então a maior da história do MST no país.

O livro contou com um prefácio do escritor português José Saramago e foi vendido junto com um disco de Chico Buarque. “Seja como for, os deserdados da terra alimentam a esperança de dias melhores”, diz trecho da publicação, citado na carta escrita na última sexta-feira (23).

“A solidariedade se fez concreta, adquiriu forma e conteúdo. O livro com encarte de disco e exposição fotográfica, percorreram mais de 100 países com a tarefa desenvolvida pelos comitês de solidariedade ou grupos de amigos do MST e centenas de cidades e espaços Brasil afora, envolvendo militantes das mais diversas organizações. A luta pela terra no Brasil irmanou-se aos trabalhadores do mundo”, relembra a carta.

Leia abaixo o texto na íntegra.

Uma carta para a família de Sebastião Salgado

Estimada Lélia, familiares e equipe. 

Com Sebastião Salgado, sempre!

“Seja como for, os deserdados da terra alimentam a esperança de dias melhores.”

 (Terra, p. 141)

Por Carlos F. Bellé*

Recebi do MST, lá pelos idos de 1996-1997, uma atividade nobre e prazerosa. Construir, coordenar e acompanhar o processo de produção e realização da Exposição Terra. Isso permitiu compartilhar momentos inesquecíveis com Sebastião Salgado e Lélia, Chico Buarque e José Saramago. Todos, naquela altura, com a alma perpassada pela dor do Massacre de Eldorado do Carajás, quando tombaram 21 Sem Terra e outros 57 resultaram feridos.

Foram vários encontros na Secretaria Nacional e inclusive em seu ateliê em Paris. Da seleção das fotos sob olhar político, artístico e feminino de Lélia, dos trabalhos da equipe em Paris, do sempre presente Sebastião e as relações para produção do livro Terra, com sua impressão na Alemanha agregando qualidade impecável ao projeto editorial. Livro definido, coube selecionar as imagens para a Exposição Terra, impressa na Gráfica Burti (SP) e com segunda tiragem na gráfica Positivo (Curitiba, PR), supervisionados por Lélia. 

A solidariedade se fez concreta, adquiriu forma e conteúdo. O Livro com encarte de disco e exposição fotográfica, percorreram mais de 100 países com a tarefa desenvolvida pelos comitês de solidariedade ou grupos de amigos do MST e centenas de cidades e espaços Brasil afora, envolvendo militantes das mais diversas organizações. A luta pela terra no Brasil irmanou-se aos trabalhadores do mundo.

Icônico e memorável foi o lançamento nacional do livro e da Exposição na Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brigadeiro Luiz Antônio, em São Paulo. Como havia sido palco do Comando de Caça aos Comunistas (CCCs), estudantes organizaram a segurança. Auditório lotado. Sebastião, Lélia, Chico, Saramago… descreveram o projeto e seu significado. Pela primeira vez a Bandeira do MST adentrou a instituição e foi entregue ao reitor Cláudio Lembo (PFL), “esta Bandeira será parte do acervo da instituição”, afirmou ele na época. 

Ocupamos espaços da classe trabalhadora, corredores de universidades, estações de metrô, museus, casas de artes, ruas, parques… Todos os espaços ocupados não mais por “deserdados da terra”, mas por sujeitos que constroem pontes para que os sonhos se tornem realidade. E assim, em cada exposição, lá estavam os maiores valores humanistas e socialistas, o internacionalismo e a solidariedade de classe, concebidos e materializados pelos olhares de Sebastião, Lélia, Chico e Saramago. 

Por decisão política do MST, os resultados econômicos da ação foram destinados ao projeto da futura Escola Nacional, posteriormente denominada Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF). Um espaço físico para vivenciar o valor da solidariedade, do estudo e do internacionalismo, forjando novos sujeitos com capacidade de intervir concretamente em realidades diversas construindo novas formas de produção e reprodução da vida, mais justa, fraterna, socialista. 

Irmanado pelo sentimento de dor pela passagem de Sebastião, construtor de poesia socialista pela arte da fotografia, nossos sentimentos de carinho, afeto e solidariedade. Nem tudo é passageiro nas frágeis circunstâncias da vida; algumas calam fundo na alma e nos movem a seguir na construção de dias melhores.

Saber que nestes últimos dias fui incorporado a Brigada Apolônio de Carvalho, equipe de trabalho da ENFF, lágrimas marejam os olhos, mas não impedem olhar ao futuro, onde sempre estará presente o coletivo construtor do livro e da Exposição Terra.

Semente não morre; transforma-se.

Sebastião Salgado, presente! Sempre!

Com carinho e afeição.

*Brigada Apolônio de Carvalho – ENFF-MST.

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