Ramal ferroviário ameaça comunidades e água potável na Grande BH, denunciam moradores

“Cada árvore, cada rio, é sagrado para nós. Nós vamos resistir.” A fala do cacique Sucupira, da Aldeia Indígena Pataxó Naô Xohã, em São Joaquim de Bicas (MG), resume o sentimento das centenas de pessoas que serão impactadas pela construção do Ramal Serra Azul, projeto ferroviário voltado ao escoamento do minério de ferro da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH) até o Porto de Itaguaí, no Rio de Janeiro.

Para especialistas, a ameaça é real. O projeto de 32 quilômetros, sob responsabilidade da Cedro Participações, poderá comprometer diretamente 78 córregos, unidades de conservação ambiental, propriedades rurais, bairros inteiros e até mesmo um hospital erguido com verba indenizatória do crime da Vale em Brumadinho. 

A previsão é que ele transporte, anualmente, 25 milhões de toneladas de minério, cortando os municípios de Igarapé, São Joaquim de Bicas, Mateus Leme e Itaúna.

No dia 9 de maio, a Comissão de Meio Ambiente da Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) realizou uma visita técnica à região atingida. A iniciativa partiu da deputada Beatriz Cerqueira (PT) e contou também com a presença da deputada Lohanna França (PV). 

“Trajeto da tragédia”

Em Igarapé, município cujo nome vem do tupi e significa “caminho de canoa” ou “caminho de água”, especialistas afirmam que o ramal passaria por cima de dois bairros, atravessaria áreas de proteção ambiental e atingiria diretamente a produção agrícola familiar e a captação de água para a capital mineira.

De acordo com a moradora Joana Niquini, desde outubro do ano passado, moradores da região vêm sofrendo assédio da empresa Cedro Participações. 

“As pessoas começaram a ser assediadas tendo as suas casas invadidas pela empresa, comunicando que ali passaria uma linha de trem e que eles estavam no local para começar a execução dos estudos necessários”, relatou. 

Ainda de acordo com ela, a atitude da empresa alarmou a população que, até aquele momento, não sabia do projeto, bem como a prefeitura e os vereadores, que alegaram também não terem conhecimento à época. 

“Conseguimos observar esse grande desastre que é essa linha férrea. Eu costumo chamar de trajeto da tragédia, porque a gente está falando de impactar a produção alimentar e a produção de água”, apontou Niquini. 

A moradora enfatiza que existe uma grande possibilidade de destruição de cursos de águas importantes para a região e para a capital. Ela lembra que ali há pessoas que têm produções agrícolas que abastecem os mercados de Belo Horizonte. 

“O nosso grande temor é que, além da destruição dos lares, do ganha-pão destas pessoas, a gente está falando de milhares de outras pessoas que vão ficar sem abastecimento de água e sem abastecimento alimentar”, conclui.

O Centro de Vida Madre Clarice, espaço de terapias naturais e espiritualidade erguido há 30 anos no bairro Ouro Verde, seria um dos atingidos. 

“Esse projeto é demoníaco. Este é um local especial de contato com a natureza, porque é a natureza que cura. Não tem dinheiro que pague isso, cuidar da vida e do planeta é mais importante. É claro que esse dinheiro que vem da destruição da natureza vai causar mais destruição”, alertou em nota a irmã Graciema Terezinha Tamanho, de 82 anos, fundadora do local.

Foto: ALMG

A ausência de diálogo com a população local tem agravado a tensão. Segundo relatos colhidos durante a visita técnica das parlamentares, drones têm sobrevoado propriedades, árvores foram envenenadas e terrenos já teriam sido sondados sem consentimento de seus donos. Enquanto isso, moradores e autoridades locais dizem não ter sido oficialmente informados sobre o projeto.

Pedro Américo Batista de Oliveira, secretário de Meio Ambiente de Igarapé, afirmou em nota que o município ainda não recebeu informações formais da Cedro Participações. 

“Já temos ciência que o traçado é insustentável do ponto de vista ambiental e jurídico. Mas, se mesmo assim ele for implementado, será uma tragédia”, alertou.

De acordo com ele, o projeto ameaça extinguir o “Guardião dos Igarapés”, iniciativa que há dez anos atua junto a produtores rurais pela preservação de nascentes do Sistema Serra Azul, responsável pelo abastecimento de parte significativa da RMBH.

Comunidades à deriva

“O primeiro erro grave foi o de comunicação. Ninguém sabe de nada, nem mesmo as autoridades”, desabafou a agricultora Elia do Carmo Henriques em encontro com os parlamentares, que vive há 30 anos na Fazenda Tatu. A propriedade fica aos pés da Serra de Igarapé e poderá ser atravessada pelos trilhos.

A região é pontilhada por estufas e cultivos a céu aberto de hortaliças, como alface, couve, chuchu e tomate, todas abastecidas pelos córregos e ribeirões que o ramal pode destruir. Entre os cursos d’água ameaçados estão o Córrego Estiva, o Mosquito e o Ribeirão Carandaí, todos alimentam o Sistema Serra Azul.

No encontro, a geóloga Daniela Cordeiro reforçou os riscos.

 “Para se construir uma ferrovia, são necessários cortes e aterros. Isso pode significar o fim de cursos d’água como o Córrego do Mosquito, de água limpa e cristalina”.

Um retrocesso chamado “autorização”

Para o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Ramal Serra Azul é exemplo de uma nova fase de expansão do setor mineral em Minas Gerais, marcada pela multiplicação de conflitos com comunidades e pelo avanço predatório da infraestrutura para escoamento. 

“É um projeto logístico autoritário, que reforça o modelo econômico de extração e destruição”, criticou Esther Guimarães, militante do MAM.

Ela explica que a proposta foi enquadrada no Novo Marco Legal das Ferrovias, criado no fim do governo Bolsonaro. A nova legislação permite que empresas privadas obtenham autorização da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) para construir ferrovias antes mesmo de realizar o licenciamento ambiental. Com a autorização, podem inclusive requerer desapropriações.

“O novo marco inverte o processo. Ele dá à empresa poder para entrar no território antes de qualquer avaliação de impacto ambiental. Isso desampara as comunidades e torna o licenciamento uma mera formalidade”, explica Guimarães.

Ainda segundo ela, se forem confirmadas as denúncias de invasão de propriedades e envenenamento de árvores, tratam-se de crimes ambientais graves, principalmente por ocorrerem dentro de uma Área de Proteção Ambiental (APA).

Ao longo do trajeto da futura ferrovia, as deputadas também visitaram o Hospital 272 Joias, construído com recursos da Vale após o rompimento da barragem de Brumadinho. Um dos dois pátios de rejeitos do projeto ficará a apenas 500 metros do hospital, ameaçando sua operação com ruídos e vibrações.

Outro local em risco é a Aldeia Pataxó Naô Xohã, em São Joaquim de Bicas. Lá, vivem cerca de 40 famílias às margens do Rio Paraopeba, ainda com coloração avermelhada desde o crime da Vale. Duas nascentes dentro do território podem ser destruídas.

“Nós não vamos permitir que destruam nossa terra. Vamos resistir”, afirmou o cacique Sucupira durante o encontro, que liderou a recepção da comitiva com cantos e maracás, símbolo da luta indígena por paz e preservação.


Foto: ALMG

Moradores também apontam indícios de especulação fundiária. Um empresário de Betim teria adquirido grandes porções de terra nas imediações do traçado da ferrovia, o que pode estar ligado à valorização futura gerada pelas obras e eventuais desapropriações.

Pressão política e mobilização popular

A deputada Beatriz Cerqueira prometeu que o relatório da visita técnica será entregue ao Ministério Público e à ANTT. 

“Essa ferrovia representa a destruição de nascentes, de modos de vida, de comunidades inteiras. Isso é muito grave”, afirmou durante a comitiva. 

Já a deputada Lohanna criticou, durante a reunião, a ausência de consulta pública. 

“A ANTT não seguiu o básico antes de permitir esse projeto: ouvir a comunidade. Isso precisa ser questionado e, sobretudo, barrado”. 

Segundo o MAM, uma das estratégias fundamentais para conter o avanço do projeto é a formação de redes metropolitanas de resistência, dado que os impactos extrapolam os limites de cada município. 

“Lutar pelo território é lutar pela água, pela comida, pelas futuras gerações”, conclui Esther Guimarães.

O outro lado 

Em respostas às denúncias apresentadas, a Cedro Participações disse que o projeto do Ramal Serra Azul está em fase inicial de desenvolvimento, atualmente na etapa preliminar que contempla estudos técnicos e ambientais para definição do traçado mais eficiente e com o menor nível possível de interferência sobre o território e suas comunidades. Afirmou também que as etapas estão sendo conduzidas em conformidade com a legislação vigente e sob supervisão dos órgãos competentes.

A empresa disse ainda que as desapropriações eventualmente necessárias serão conduzidas exclusivamente por meio dos instrumentos legais cabíveis, com base em declaração de utilidade pública e garantia de justa indenização, e que não há qualquer associação da empresa ou de seus profissionais a atos que envolvam invasões de propriedade.

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