Em meio a um processo, promovido pelo governo de Romeu Zema (Novo), de desestruturação, falta de investimento, interferências políticas e ameaças de privatização, a possibilidade de federalização da Empresa Mineira de Comunicação (EMC), que une a Rádio Inconfidência e a Rede Minas, reabriu o debate sobre o futuro da comunicação pública em Minas Gerais.
A proposta está incluída no pacote de projetos enviados pelo Executivo estadual à Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG) para aderir ao Programa de Pleno Pagamento da Dívida (Propag). E consiste em transferir a EMC e outros bens públicos para a União, como forma de abater o débito do Estado, que cresceu mais de 50% durante a gestão Zema e está próximo da marca de R$ 165 bilhões.
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Vinculada atualmente à Secretaria de Estado de Comunicação, a EMC foi criada em 2016, alterando o nome da Rádio Inconfidência Ltda. e extinguindo a Fundação TV Minas Cultural e Educativa, com o objetivo de unificar estrategicamente as duas estruturas, como forma de potencializar a difusão de conteúdos produzidos em Minas Gerais que contribuam com a educação, informação e apropriação cultural da população mineira.
As expectativas eram grandes. Porém, especialistas e trabalhadores denunciam que, nos últimos seis anos, o governo de Romeu Zema, ao invés de investir recursos e fortalecer a EMC, promoveu o desmonte da empresa.
Foco do debate deveria ser outro
Agora, com a proposta de federalização, na avaliação da professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Angela Carrato, o governador desvia a atenção do que deveria ser o foco: a construção de uma política adequada de comunicação pública para o estado.
“A EMC tem um papel estratégico. Tão importante quanto energia, água, saneamento e educação é a informação. E a EMC tem o objetivo de cumprir o papel de dar espaço para a realidade, a cultura e os trabalhadores de Minas. No entanto, o governo Zema quer, em uma canetada, acabar com tudo isso”, alerta.
“Ao invés de as pessoas discutirem a importância da Empresa Mineira de Comunicação, elas passam a discutir se deve ou não deve ser federalizada. Mas a questão não é essa. Retira também do foco o péssimo governo que o Zema tem feito. Ele não pagou nada da dívida, mentiu para a população, e, quando explode a verdade, tenta destruir o patrimônio público”, continua Carrato.
A Constituição de Minas Gerais determina que os veículos ligados à administração direta ou indireta do Estado devem privilegiar a promoção da cultura, da educação e a regionalização, tendo conselhos editoriais compostos paritariamente entre representantes do poder público e da sociedade civil. Ou seja, diante de um cenário em que tem sido intensificada, por exemplo, a disseminação de notícias falsas, as empresas públicas de comunicação poderiam exercer papel educativo decisivo.
Por isso, o jornalista Aloísio Lopes, que foi membro do Conselho Curador da TV Minas, também critica a ação recente do governo Zema. Para ele, mais uma vez, a gestão atua no sentido de enfraquecer a EMC, que, na realidade, precisa ser fortalecida.
“Eu acho lamentável que o governo de Minas tenha incluído a EMC no rol de federalização ou privatização. A comunicação e a informação pública são direitos do cidadão. A valorização da cultura mineira e a integração do estado são pautas permanentes da TV Minas e da Rádio Inconfidência. Não tem sentido algum federalizar uma empresa com uma importância tão grande para Minas Gerais”, avalia.
“Na verdade, o que deveria ser feito é o contrário: fortalecer a EMC. Precisa ter mais investimento, valorização dos trabalhadores, democratização no acesso e produção dos conteúdos e, inclusive, o estímulo às pequenas emissoras dos municípios do interior do estado, criando uma rede de comunicação pública”, complementa.
Se aprovado, o Projeto de Lei (PL) 3.737/2025, de autoria do governador, que trata sobre a federalização da EMC, autorizará o Executivo a alienar total ou parcialmente a participação do estado junto à empresa; transformar, incorporar, fundir ou cindir, total ou parcialmente, a empresa; transferir ou ceder ativos, bens e direitos; entre outras coisas.
Diante da ameaça de privatização, qual é a alternativa?
Para Lina Rocha, presidenta do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de Minas Gerais (SJPMG), incluir a empresa entre um dos bens que o governo estadual está disposto a entregar para a União é mais uma sinalização de que a gestão Zema não tem intenção de investir em comunicação pública.
“Isso tem se evidenciado desde o seu primeiro mandato e ficou transparente com a proposta de federalização. A entrega de um patrimônio público significa abrir mão de um potencial de comunicação enorme, já que as emissoras Rádio Inconfidência e TV Minas, tem um alcance em quase todos os municípios do estado, e até fora do Brasil”, explica.
Diante desse cenário, a jornalista chama a atenção para um risco ainda maior: o de privatização da EMC. Rocha teme que, caso esse patrimônio permaneça sob responsabilidade do Estado de Minas Gerais, ele seja entregue à iniciativa privada. Por isso, ela defende que, mesmo não sendo o ideal, a federalização pode ser uma forma de proteger a empresa.
“O SJPMG entende a proposta como uma saída para a atual situação das emissoras, que vivem um momento de precarização e falta de investimentos, e entende a proposta como uma maneira de proteger esses patrimônios mineiros, inclusive contra uma possível privatização”, explica.
Cenário é de completo desmonte
Waleska Falci, apresentadora concursada da Rádio Inconfidência, presidente da Comissão Editorial e membro do Conselho Curador da emissora, defende a mesma perspectiva. Ela acredita que, diante do descaso do atual governo estadual, a EMC fica diante de duas alternativas, “federalizar ou privatizar”.
“Sem dúvidas, nesse contexto, federalizar é, de longe, a melhor opção. Entregar a comunicação pública para a iniciativa privada seria retirar Minas Gerais do mapa. A empresa atualmente está com falta de equipamento e de profissionais. O último concurso da Rádio Inconfidência foi em 2005 e da TV Minas em 2013. Muitos profissionais saíram espontaneamente, buscando outras oportunidades, e não houve como repor esses cargos que ficaram vagos”, explica.
Logo no início da primeira gestão de Romeu Zema, funcionários foram exonerados e o Executivo tentou fechar a emissora AM da Rádio Inconfidência.
“Tiveram várias tentativas de privatizar as rádios AM e FM e a TV Minas, incluindo a venda do prédio onde estão as emissoras e a Orquestra Filarmônica. Chegamos a ter um presidente na EMC que disse que tinha sido nomeado para o cargo para fechar as emissoras de rádio”, continua a apresentadora da Rádio Inconfidência.
Desvalorização dos trabalhadores
Os trabalhadores ficaram sabendo sobre a proposta de federalização pela imprensa, o que, na avaliação de Brenda Marques Pena, diretora do SJPMG e servidora pública da Rede Minas, evidencia mais uma das marcas da gestão de Romeu Zema: a falta de diálogo e a desvalorização profissional.
“Dos cerca de 300 concursados da Rede Minas que assumiram em 2014, só 105 estão atuando na Rede Minas hoje. Muitos servidores públicos pediram para ir para outros órgãos do Estado, por falta de valorização, péssimas condições de trabalho e muitas denúncias de assédio moral. Não foi apresentada proposta ou qualquer diálogo pelo governo em relação aos trabalhadores, nem pela direção. Nada é repassado, falta transparência. Não houve diálogo antes da apresentação da proposta de federalização e nem até agora”, evidencia.
Em 2023, o governo Zema demitiu cinco dos funcionários mais antigos das emissoras, sem pagamento de verba rescisória. Depois de muitas mobilizações, a Justiça mineira reverteu as demissões. No final de 2020, a rádio lançou o Programa de Desligamento Voluntário (PDV). Na época, o SJPMG já havia denunciado que o objetivo era demitir cerca de 40 funcionários do quadro da EMC.
Principais preocupações
Pena também defende que a federalização pode ser um caminho para a manutenção da Rádio Inconfidência e da TV Minas, além de uma barreira contra a privatização. Mas, entre as preocupações, ela destaca a questão dos trabalhadores.
O operador de gravação da Rádio Inconfidência Celso Guimarães também questiona sobre o futuro dos profissionais.
“Minha única preocupação [com a federalização] é em relação aos funcionários concursados das duas emissoras. Qual será o futuro deles? Eles vão juntos? Esperamos que sim, mas poderíamos levar nossas carreiras? Se essas demandas forem atendidas, acredito que a empresa possa crescer e retomar o protagonismo que sempre teve”, indaga.
Lina Rocha apresenta que, além dessa, outra preocupação do SJPMG é a possibilidade de “fatiamento” da federalização, ou seja, que a entrega para a União seja feita de forma parcial, possibilidade prevista no PL, como mencionado acima.
“Nossa preocupação é com a manutenção dos postos de trabalho dos empregados públicos da Rádio Inconfidência e dos servidores de carreira da TV. Também, se houver de fato a federalização da EMC, que não seja feita de maneira parcial, mas com a federalização de todo serviço de radiodifusão, mantendo suas estruturas, programação regionalizada e identidades visuais”, enfatiza.
O governo Zema argumenta que a federalização da empresa, que possui antenas de retransmissão em todo o estado de Minas, seria útil para a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Mas não deu informações se os trabalhadores da EMC também seriam absorvidos pela EBC, entrando, por exemplo, no plano de salários e cargos da empresa de comunicação pública nacional.
Para o ex-presidente do SJPMG Kerisson Lopes, é natural que, diante do contexto de desmonte promovido pelo governo Zema, trabalhadores das emissoras estaduais tenham expectativas de melhores condições com a possibilidade de federalização. Ainda assim, ele acredita que é preciso cautela.
“Claro que os trabalhadores das estatais, com salários e condições de trabalho aviltantes, podem ver uma oportunidade em se tornar funcionários federais e melhorarem suas condições trabalhistas, o que é legítimo e justo. Mas temos que ver também a importância de o Estado ter uma empresa pública de comunicação, como deveria ser, e uma potente universidade estadual presente em cada canto de Minas”, argumenta, fazendo referência também à Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), incluída na proposta de federalização, assim como a EMC.
Futuro da programação
Outra preocupação levantada por especialistas é o risco de as emissoras se tornarem apenas retransmissoras de conteúdos nacionais, perdendo a centralidade na promoção da cultura mineira.
Waleska Falci acredita que, com uma absorção pela EBC, esse cenário é improvável e que a rádio e a TV podem manter programação própria e local, retransmitindo alguns programas nacionais, o que já acontece na dinâmica atual da emissora.
“A troca de conteúdos das diversas regiões do país estão cada vez mais fortes e organizadas, por meio da Rede Nacional de Comunicação Pública (RNCP). Programas produzidos em Belo Horizonte também entram na troca de conteúdos entre as emissoras públicas”, explica.
Celso Guimarães alerta para outra questão: em que pese as emissoras devam privilegiar os conteúdos educativos e culturais, na avaliação dele, a gestão Zema tem promovido um aparelhamento de suas programações.
“A infraestrutura de transmissão da EMC tem sim um grande valor, mas está sendo muito mal aproveitada pelo governo Zema. Hoje em dia, ela está sendo utilizada para transmissão de programas que não deveriam ser transmitidos pela Rede Minas, como desenhos de cunho religioso e programa policial sensacionalista. Com a federalização, a EMC estaria em uma grande rede nacional de comunicação pública, que sofre menos intervenção política e com um orçamento 20 vezes maior”, argumenta.
No primeiro semestre de 2023, quando o Executivo aprovou uma reforma administrativa, a EMC foi transferida da Secretaria de Estado de Cultura e Turismo (Secult) para a então recém-criada Secretaria de Estado de Comunicação. Naquela época, deputados estaduais e especialistas já alertavam sobre a possibilidade da mudança ter como consequência o aparelhamento estatal da empresa.
Ainda assim, para Angela Carrato, a federalização beneficiaria apenas o próprio governo Zema, já que retiraria de Minas Gerais uma estrutura pública de comunicação que, em muitos aspectos, faz contraposição às ideias defendidas pelos veículos da mídia comercial e hegemônica.
“Eu fico imaginando o seguinte, se acaba a TV Minas e Rádio Inconfidência, Minas Gerais, que já tem uma mídia comercial horrível e da pior qualidade, comprometida com o que há de mais nocivo aos interesses mineiros e mineiras, onde iremos ter o mínimo de informação de qualidade? Não vai ser na Rádio Itatiaia ou nas empresas do grupo O Tempo, que têm interesses privatistas, defendem o neoliberalismo e, em última instância, defendem até governos de extrema direita”, questiona.
“É preciso uma mídia pública comprometida com os interesses da maioria. E é essa mídia pública, que foi tão importante e decisiva para Minas Gerais, que o Zema quer entregar agora. O único que vai ter vantagem com a federalização ou a privatização da EMC é o próprio Zema, porque acaba com emissoras que incomodam os seus amigos privatistas”, conclui a professora da UFMG.
Dívida deveria ser questionada
Também contrário à proposta de federalização, Kerisson Lopes descreve a forma como tem sido feita a discussão sobre a dívida de Minas Gerais com a União como uma “página vergonhosa da história do nosso estado”.
Isso porque, na avaliação dele, a composição dos débitos que chegam a R$ 165 bilhões deveria ser questionada.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, houve uma mudança tributária, com a criação da Lei Kandir, que onerou os estados e municípios exportadores de commodities. No caso de Minas Gerais, entre 1996 e 2019, o estado perdeu a receita de R$ 135 bilhões.
“A compensação desse montante por parte da União foi de pouco mais de R$ 8,7 bilhões, pagos em 17 anos. Ao invés de questionar a dívida, surgiu essa proposta de entregar as estatais mineiras. São as riquezas do nosso Estado que estão em jogo. Se hoje Minas Gerais está quebrado, o que poderá acontecer se abrir mão dos poucos canais de receita livre, como é o caso da Codemig e a Cemig?”, questiona.
“Caso a federalização siga adiante, são essas empresas que podem ser do interesse da União, pois são extremamente lucrativas. ‘Malandramente’, o atual governo de Minas Gerais incluir no pacote para a adesão de Minas Gerais ao Propag a EMC e a UEMG. Como não são ‘lucrativas’, não devem interessar a um credor que está atrás de ativos para amortizar dívida”, finaliza, sinalizando que talvez o objetivo de Zema com a proposta de federalizar a Empresa Mineira de Comunicação ainda seja construir os caminhos para a privatização.