As palavras e seu poder

Pelas palavras podemos querer dominar o mundo e os outros

ensaio de Gonçalo Armijos Palácios*

            Fascina-me o fato de as palavras terem o poder que têm. Que sejam consequência de determinadas necessidades e do aperfeiçoamento das nossas faculdades. Que tenham tido um começo e uma finalidade tão simples. Que terminem nos impondo uma maneira de ver, de ser e de agir.

            A comunicação poderia ter sido seu propósito inicial. Alertar, chamar. O que insetos e animais inferiores fazem com cores, simples ruídos e mesmo odores. Nós, inicialmente, o fizemos articulando esses sons. E assim nos transformamos para sempre. Não só veiculamos uma sensação interna para que seja compreendida por outros. Não só nos limitamos ao que é ou acontece dentro de nós e ao nosso redor. Mas comunicamos o que poderia ser, o que não poderia, o que não foi. O que está além de toda comprovação. De toda constatação. Dizemos muito mais do que podemos provar, apontar, constatar. Vamos muito além do que precisamos dizer. Vamos além do necessário.

            Que força é essa que nos compele a ir além dos nossos limites? Por que superamos barreiras consideradas instransponíveis?  Por que nossa espécie se esforçou por ir além do que precisava?             O fato é que estamos aqui, muito além do que jamais teríamos imaginado. Não só pensando e comunicando o que imediatamente é e foi. Mas o que há muito tempo foi e, depois de intermináveis eras, será.

            Não só nos limitamos a dizer e pensar as misérias que nos cercam, mas as desgraças que nos esperam. Para onde foi nos levar a palavra. Aos tétricos destinos de um futuro sombrio, muito além de um presente não menos opaco.

            Tristes seres os que podem contemplar os horrores que virão. E dizê-lo, exprimi-lo em fórmulas inelutáveis. Não sei o que é mais triste, não poder evitar o futuro ou ter a certeza de que não o podemos evitar.

            Mas nesses limites fomos levados como no lombo de um cavalo em disparada. Cavalgando sobre palavras cujas rédeas já não seguramos mais. Distraídos, olhamos extasiados as coisas que aprendemos a dizer. Os vocabulários que assumimos e que terminam nos submetendo. Forçando-nos a dizer as coisas sempre de certas maneiras, das mesmas. Obrigando-nos a pensá-las e repensá-las dos mesmos modos. Assumindo inconscientemente os valores embutidos nelas. Aceitando os preconceitos dos quais dificilmente nos livramos. Falando e pensando sempre de um mesmo jeito, passamos a desempenhar o papel de sermos o que supomos que devemos sempre ser. Donos de um vocabulário, terminamos sendo reféns de seus preceitos. Assumimos um estilo de dizer, e uma forma de ser. Amadurecemos na medida em que as roupas verbais que vestimos se convertem em armaduras. Com elas nos protegemos, mas, também, delas não saímos. Nelas estamos presos. Queremos dominar os outros, mas por elas somos também dominados.

            Que pode interessar agora como e por que começaram. Elas, as palavras. Não servem mais para cumprir primitivas funções. Queremos, com elas, chegar ao fundo do abismo. E por elas descemos. Como por escadas de corda que, desenroladas, caem em precipícios que precisamos sondar. Cada palavra é um degrau. Cada degrau, uma conquista. Cada conquista, uma armadilha. E vamos, assim, descendo por essa escada sem saber ao certo aonde nos leva. Sozinhos, e em grupo, mergulhando nas nossas profundezas.

            Falamos mais para nós do que entre nós. Comunicar é o que menos queremos. Interessam-nos as palavras para usar e não ser usados, para controlar e não ser controlados, para nos ocultar, não para nos mostrar. Interessam-nos as nossas próprias palavras, mais do que as dos outros — que, em última instância, pouco nos importam. Para-peito, máscara, armadura de guerra, tudo isso, sob o brasão que distingue nosso grupo, isto é, aqueles que falam como nós.

*Gonçalo Armijos Palácios
José Gonzalo Armijos Palácios possui graduação e doutorado em Filosofia pela Pontificia Universidad Católica Del Ecuador (1978 e 1982, respectivamente) e doutorado em Filosofia pela Indiana University (1989). Realizaou estudos de pós-doutorado na Indiana University em 1996 e 1997. Desde1992 é professor titular da Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de Filosofia, atuando principalmente nos seguintes temas: filosofia, metafilosofia, filosofia política e ensino de filosofia. Participou do Grupo de Sustentação para a criação do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, em 2006, do qual foi seu primeiro coordenador eleito. Foi o fundador do Curso de Pós-Graduação em Filosofia da UFG (1993), da revista Philósophos (1996), do Curso de Graduação em Filosofia da cidade de Goiás da UFG, em 2008, e participou da criação do Campus Cidade de Goiás da UFG em 2009.
 
publicado originalmente na Coluna Ideias do Jornal Opção 

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