Escravidão contemporânea: o passado colonial que ainda aprisiona o Brasil

Quase 400 anos de escravidão não se apagam sem deixar marcas. Passado o primeiro quarto do século XXI, o Brasil ainda carrega nas costas o peso de estruturas de poder baseadas na exploração. Enquanto lutamos pelo fim da escala 6×1 — herança de uma lógica que exaure o trabalhador até a última gota —, convivemos com números alarmantes do trabalho análogo ao de escravo. Violência física ou psicológica, longas jornadas sem a devida remuneração, servidão por dívidas e cerceamento da liberdade, que configuram este tipo de trabalho, de acordo com a Lei 10.803/2003 e com o artigo 149 do Código Penal, ainda são a realidade de milhares.

Em 2025, o Brasil completa 30 anos do reconhecimento oficial da existência de formas contemporâneas de escravidão. Desde então, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) resgatou mais de 65 mil trabalhadores, mas um relatório da Global Slavery Index estima que ainda existam cerca de 370 mil pessoas em condições análogas à escravidão no país.

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Em séculos, o perfil das vítimas não mudou: negros, pobres, marginalizados. Imigrantes de países como Bolívia, Venezuela, Haiti e China também estão entre os vulneráveis. Nos centros urbanos, a exploração é registrada principalmente no serviço doméstico, na construção civil, na indústria têxtil, em fábricas e em grandes eventos.

No campo, onde o legado colonial dos latifúndios persiste, os casos são notáveis na pecuária, nas monoculturas de commodities, na mineração e em usinas canavieiras e carvoarias. Neste cenário, entendemos a urgência da Reforma Agrária para desmantelar a tradição latifundiária, garantir a dignidade nas zonas rurais e possibilitar a produção de alimentos saudáveis para todo o povo brasileiro.

Pela Constituição Federal, a terra deve cumprir sua função social através da produtividade e do respeito às leis trabalhistas e ambientais. É nesta perspectiva que o MST realiza suas ocupações, pressionando as autoridades para que seja cumprida a constitucionalidade da distribuição de terras onde há denúncias de exploração e desrespeitos aos direitos dos trabalhadores.

O Brasil tem plenas condições de oferecer trabalho saudável a seus cidadãos. Em 2023, quando o resgate de 207 trabalhadores em vinícolas de alto padrão, em Bento Gonçalves (RS), chocou o país, a procura pelos sucos de uva orgânicos produzidos por agricultores familiares do MST disparou, registrando um aumento de 300% nas vendas. Este é um exemplo da viabilidade de modelos de produção embasados na justiça socioambiental. E a mensagem é clara: o consumidor está disposto a apoiá-los — mas falta vontade política para que sejam regra, não exceção.

É possível romper esse ciclo?

O Brasil vem avançando no combate ao trabalho análogo à escravidão, mas ainda precisamos percorrer um longo caminho. O modelo brasileiro de fiscalização é elogiado pela Organização Internacional do Trabalho, mas a impunidade e a lentidão judicial acendem um alerta.

Neste mês, o Governo Federal atualizou a “lista suja” com nomes de empregadores que submeteram trabalhadores a condições análogas à escravidão. O documento cita 745 pessoas e empresas, incluindo o genro de um dos acusados pela Chacina de Unaí (MG), quando quatro funcionários do MTE foram assassinados a caminho de uma fiscalização, em 2004. Duas décadas depois, ninguém está preso pelo crime. É mais um caso que escancara a violência no campo e a morosidade da Justiça frente ao poder dos ruralistas.

Além disso, são fundamentais as políticas de proteção, acolhimento e reinserção para vítimas, a exemplo da Lei 10.575/24, de minha autoria, que garante assistência jurídica, saúde, moradia e Seguro-Desemprego aos resgatados no estado do Rio de Janeiro.

Também é importante que avancemos em estratégias de inteligência, como o investimento em tecnologias inteligentes de cruzamento de dados para identificar práticas ilícitas. São bem-vindas ainda parcerias entre instituições e coletivos da sociedade civil, apoio de organizações internacionais, ações educativas e campanhas de conscientização.

O combate ao trabalho análogo à escravidão exige mais do que denúncias: é preciso coragem política para desmontar estruturas de poder arraigadas desde o Brasil colônia. Enquanto houver lucro na exploração humana, o ciclo se repetirá. A hora de romper com a lógica perversa do latifúndio e do trabalho degradante é agora. O futuro do país não pode mais esperar.

*Marina do MST é deputada estadual pelo PT do Rio de Janeiro.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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