Seis meses após enchentes no RS, famílias que perderam suas casas enfrentam o drama de uma vida provisória

Quase 1800 pessoas ainda estão em abrigos de 23 cidades do estado.
Por enquanto, o governo estadual entregou 212 casas provisórias. Rio Grande do Sul: famílias que perderam casas nas enchentes vivem o drama de uma vida provisória
Seis meses depois da maior catástrofe climática da história do Rio Grande do Sul, um levantamento concluiu que ficaram quase 17 mil cicatrizes no solo – o maior número de deslizamentos já registrado no Brasil em uma única tragédia.
Ao todo, 183 pessoas morreram e 27 ainda estão desaparecidas. Milhares de brasileiros perderam suas casas, suas referências.
O Fantástico acompanhou os últimos meses de alguns deles. A reportagem especial do Fantástico deste domingo (3) é sobre o hoje e o amanhã dos moradores do Rio Grande do Sul.
Imagine se, de uma hora para outra, você tivesse que sair de casa para sobreviver. A auxiliar de limpeza Elena Quadros diz que começar do zero, aos 58 anos, não é fácil.
São Leopoldo tem 217.409 habitantes e 2.349 casas inabitáveis.
Quando a enxurrada passou, a estrutura da casa estava fora da base. Como ela é de madeira, a madeira empenou e a casa toda torceu. Durante a enchente, Elena e o marido se hospedaram em casa de conhecidos.
No Vale do Taquari, o primeiro impacto das chuvas ocorreu em setembro de 2023. Em maio, com uma nova enchente, a situação ficou ainda pior. É o caso de Muçum, onde 20% dos moradores foram embora da cidade e bairros inteiros desapareceram. Muçum tem 4.601 habitantes e 363 casas inabitáveis, de acordo com a prefeitura.
A casa da aposentada Carmelina Pessi foi varrida do mapa.
“A minha casa vivia cheia de gente. Ia para o rio, tomava um banho, vinha para casa, fazia um chimarrãozinho, uma pipoquinha. O rio era meu amigo, agora não gosto mais dele”, diz Carmelina.
Cada moradia precisa passar por uma análise técnica.
“A gente precisa desses laudos porque os órgãos de controle nos exigem essas informações. Nós temos alguns relatos de prefeituras que nem técnicos têm para poder fazer esses laudos”, afirma o Ministro das Cidades Jader Filho.
“A gente teve 95 municípios em situação de calamidade e mais de 350 em situação de emergência”, afirma o governador RS, Eduardo Leite.
A Universidade do Vale do Taquari foi contratada pelo governo do estado para fazer os laudos de áreas com conjuntos de casas inabitáveis. Até agora são 14.193 moradias condenadas em 40 municípios.
O trabalho começou com a enchente de setembro de 2023 e só aumentou com a catástrofe de maio.
“Conjuntos que têm 500 famílias, 1000 famílias e que vão ter um bairro novo para morar ou que vão ser realocadas para outros bairros novos na cidade. Esse é o grande desafio da etapa de reconstrução”, diz Jamile Weizenmann, professora e coordenadora do mapeamento feito pela UNIVATES.
“E a própria questão da logística, do acesso, da segurança, de entrar e sair desses novos bairros, que são desafios que vão muito além da unidade habitacional, da casa propriamente dita”, diz Mateus Trojan, prefeito de Muçum.
Em Muçum, ainda se encontram casas com as marcas da enchente e do abandono.
Dona Gentila Capolonga, aposentada de 88 anos, perdeu a casa própria. O neto alugou uma outra, em Muçum, mas que também alagou em maio deste ano e eles perderam tudo novamente.
“É complicado para uma senhora de 88 anos, a cada seis meses passar por esse tipo de situação. Está virando praticamente uma cidade fantasma”, conta André Capalonga, neto da Gentila.
O Fantástico conheceu a família em Encantado. Gentila estava vivendo com o filho dela na terceira moradia em menos de um ano.
“Que façam esse levantamento, que façam esse estudo. É isso que nós precisamos. As pessoas querem tranquilidade e paz pra poder viver”, afirma Miguel Ângelo Capalonga, filho da Gentila.
Canoas, de 347.657 habitantes, tem 4.490 casas inabitáveis e 499 pessoas em abrigos, segundo a prefeitura.
Indianara Santos da Silva pensa no futuro dos 5 filhos e daquele que ainda está na barriga. Ela e o marido moravam na beira do rio e eles quase morreram afogados. A casa em Canoas não resistiu. Em julho, a família estava de mudança, para o Centro Humanitário de Canoas. Nara recebe alimentação e passa a ter um espaço um pouco mais reservado. A mesma estrutura que a ONU usa para refugiados.
Mesmo sem concluir o número de moradias condenadas nessa tragédia, o governo federal analisa o pedido de mais de 44 mil unidades habitacionais; 7.500 já foram aprovadas.
Dependendo da análise de renda, elas podem escolher uma casa que esteja pronta até R$ 200 mil. Ou esperar pelas que vão ser construídas. Nenhuma obra nova foi concluída.
“As prefeituras precisam nos apresentar terrenos que sejam seguros ”, diz Jader Filho, ministro das Cidades.
Em agosto, o governo federal entregou 367 unidades do Minha Casa, Minha Vida na região metropolitana de Porto Alegre que já estavam em construção antes da tragédia.
E antecipou para as pessoas que estavam na fila da habitação e que foram atingidas pela enchente. O governo do estado também tem um programa habitacional em andamento.
“Nós temos pelo menos duas mil unidades já contratadas em módulos de concreto. Casas definitivas. E a expectativa de que a gente tenha primeiras unidades sendo entregues até o final deste ano, o início do ano que vem”, afirma o governador do RS Eduardo Leite.
Por enquanto, o governo estadual entregou 212 casas provisórias.
Santa Tereza tem 1.505 habitantes e 73 casas inabitáveis.
Na Serra Gaúcha, o problema vem do alto, das montanhas.
Logo depois da tragédia, os professores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul usaram drones e imagens de satélites pra rastrear todo o território gaúcho.
Foram quase 17 mil deslizamentos de terra. O maior número já registrado no Brasil numa única tragédia. 10.600 propriedades rurais atingidas.
“Aqui eu tinha uma casinha onde eu guardava as ferramentas, motosserra, as roçadeiras. Aí foi embora tudo, não achei nada. Mas de produção eu tinha 5 hectares. E hoje praticamente sobrou 2 hectares”, conta um produtor rural.
“150 municípios foram atingidos no Rio Grande do Sul por movimentos de massa e Santa Teresa. É o município com a maior quantidade de movimentos de massa por quilômetro quadrado”, diz o pesquisador Clodes.
O agricultor Vilson Barella perdeu 30% da produção de uva e as rachaduras continuam no meio da plantação.
“A gente ficou meio assustado. Daí veio a Defesa Civil, me interditaram a casa, mas a gente só vai dormir fora, né? E trabalhar, a gente volta normal. Essa terra aqui foi uma terra herdada do meu pai e eu fiquei trabalhando aqui e ainda continuo. Eu me casei com a Naira ali, eu criei três filhos e eu fiquei trabalhando aqui. Eu amo esse lugar aqui”
O monitoramento com drones e satélite vai dizer se é seguro o agricultor continuar morando ali.
“Se o Rio Grande do Sul não der uma resposta agora – de forma efetiva – e com colaboração dos entes federativos, do estado, do governo federal, vai ficar difícil imaginar para o Brasil uma solução para a adaptação das mudanças climáticas nas cidades brasileiras”, afirma Júlio Predrassoli, professor da Universidade de Michigan / MapBiomas.
“O Rio Grande do Sul compreende a sua responsabilidade. Montamos um comitê científico que tem especialistas que de alguma forma têm a compartilhar conhecimento. No que diz respeito à legislação, com a disponibilidade de discutir a nossa contribuição para ajudar com que essas mudanças climáticas sejam, de alguma forma, mitigadas”, afirma o Governador Eduardo Leite.
“A gente está preocupado, sim, em tornar nossas cidades resilientes e mais sustentáveis”, diz Jader Filho, Ministro das Cidades.
Qualquer chuva traz apreensão.
“Ela não é só uma catástrofe habitacional ou técnica. Mas ela é emocional, sobretudo. É o lar, é onde se faz a vida, é onde tu constrói família, é onde tem os afazeres do dia a dia” diz Jamile Weizenmann, arquiteta e coordenadora do mapeamento feito pela Univates.
Quase 1800 pessoas ainda estão em abrigos de 23 cidades do estado.
Tem gente que decidiu não esperar mais e desmontou a casa por conta própria.
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