‘Queria pelo menos uma carta’: como vivem as mulheres presas que não recebem visitas ou notícias da família


g1 entrou em penitenciária do interior de SP para conversar com mães que não veem os filhos ou qualquer familiar desde que foram presas. No Brasil, 26,8% das presidiárias não têm nenhum visitante. Solidão no cárcere: presidiárias narram rotina sem visitas atrás das grades
Roberta* tem 32 anos e é mãe de três filhos. A mais nova tinha apenas 4 quando deram o último abraço. Hoje, sem qualquer registro além dos que carrega na memória, ela tenta na imaginação desenhar o rosto da menina que não vê há um ano e meio.
A mãe está presa na Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu, no interior de São Paulo, e, desde que foi condenada por furto, nunca mais viu ninguém da família. Sem visitas, a detenta também não tem respostas para as dezenas de correspondências que envia todos os meses.
“Eu gostaria que eles, pelo menos, enviassem uma carta falando que está tudo bem. Mandando fotos. Enviando fotos dos meus filhos. Porque eu estou aqui quase há dois anos. A última vez que eu vi minha filha ela tinha 4 anos. Ela está com 6. Agora mudou totalmente”.
A situação vivida por Roberta, e que por ela é definida como abandono, é compartilhada por 26,8% das mulheres presas em todo o país. Segundo o painel Sisdepen, do Ministério da Justiça, é esse o índice de detentas que cumprem pena ou aguardam julgamento sem ter nenhum visitante cadastrado. Confira AQUI reportagem completa com os dados.
Receber a visita de um familiar na prisão é direito previsto na Lei de Execuções Penais. Segundo a professora de direito penal Fernanda Ifanger, da PUC-Campinas, a ausência da visita durante o cumprimento de pena pode prejudicar a ressocialização. “Pode significar não ter para onde voltar ao ser liberto”, diz.
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‘Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere’
Na semana do Dia das Mulheres, o g1 publica a série especial “Dia de visita: a solidão da mulher no cárcere”, que aborda as diferentes relações e desafios que elas enfrentam diante o sistema prisional. Ao longo da semana, a série vai mostrar:
O encontro da reportagem, dentro do presídio, com mulheres sem visita há quase 3 anos
Dados de visitação para mulheres e homens no sistema penitenciário
Histórias na fila de mulheres que visitam homens em um complexo penitenciário de SP
O que está por trás do abandono da mulher encarcerada segundo especialistas
Relatos de mulheres que criaram uma rede de apoio e movimentam a economia local no entorno dos presídio
Solidão no cárcere: 26% das mulheres presas no Brasil não recebem visitas
De dentro das grades
O g1 recebeu permissão da Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo para encontrar Roberta e outras duas detentas da Penitenciária Feminina de Mogi Guaçu (SP) que não possuem nenhum visitante cadastrado. Com a maior população carcerária do país, o estado concentra também o maior número de mulheres sem visitas.
As presas que conversaram com a reportagem são mães – realidade de 77% das presas no Brasil, conforme o Sisdepen – e não veem os filhos desde que passaram a viver atrás das grades. Nos relatos, a retaliação às escolhas de vida, a dificuldade financeira e a distância de casa estão entre os motivos para a ausência familiar.
Penitenciária feminina de Mogi Guaçu
Yasmin Castro/g1
A unidade visitada pela reportagem mantém cerca de 850 mulheres, segundo dados de março de 2025 da SAP. Embora o total de visitantes cadastrados chegasse a 1,4 mil até junho de 2024, a diretoria da unidade diz que, na prática, o número de parentes que vão até a unidade não chega a 200 no dia de visita.
Esse, aliás, é outro ponto de destaque: diferentemente dos presídios masculinos, que reservam todo o final de semana para receber os familiares, por conta da baixa demanda, a unidade optou por encerrar as visitações presenciais aos sábados – dia em que passaram a ser realizadas visitas virtuais.
O encontro com as presas ocorreu no pavilhão escolar, em uma sala reservada para o programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Nas paredes, o trabalho de uma aula passada: cartazes com mensagens motivacionais e contra o suicídio. “Você não está sozinha”, diz um deles.
‘Quem abandonou primeiro?’
Roberta* é técnica de enfermagem, mãe de três filhos, e está presa há um ano e meio.
Estevão Mamédio/g1
Roberta, técnica de enfermagem, aperta as mãos ao contar que sempre teve uma família estruturada. Nunca passou necessidade e, assim como os filhos, teve acesso a boa educação. “Ninguém passou por delegacia ou presídio […] Minha mãe sempre fixou bem, sempre educou muito bem a gente”.
A vida mudou quando se tornou usuária de drogas. Sem seguir os conselhos que ouvia da tia ou da avó, conta que se afundou até começar a cometer furtos para comprar entorpecentes. Foi presa em 2023 e hoje cumpre uma pena que ela não sabe bem até quando vai durar.
A mãe morreu há três anos e o pai, que tem Alzheimer, vive internado em uma clínica. O marido está preso e os filhos estão sob cuidado da irmã e do cunhado, aos quais se refere como “uma bênção”. Roberta não sabe se eles estão bem. Em um ano meio, não teve nenhuma notícia.
“É isso que entristece minha família. Eu acho que, na verdade, é muita mágoa, muita tristeza da parte deles, de saber que não era necessário. Para a minha família é difícil, porque a gente acaba abandonando filhos e abandonando a família. Aí a gente vem aqui presa. Mas quem abandonou primeiro? Às vezes eu falo e penso: ‘fui eu’. Eu abandonei eles lá fora”.
‘Não esperam que mulheres cometam crimes’
Roberta* é técnica de enfermagem, mãe de três filhos, e está presa há um ano e meio.
Estevão Mamédio/g1
Ela acredita que, se fosse homem, seria diferente. “O fato é que a sociedade é assim. A gente é mulher. A mulher é vista como mãe de família, como responsável. É isso que as pessoas esperam das mulheres. Não esperam que as mulheres cometam crimes”.
Mas a técnica, que trabalha na fábrica de acessórios de iluminação do presídio, não perde a esperança. Tem fé de que, mais cedo ou mais tarde, terá uma nova chance. “Eles têm esse receio de estar vindo, de estar dando uma oportunidade e a gente estar decepcionando novamente”.
“Eu gostaria de saber deles. Se eles estão bem. É uma coisa que a gente fica preocupada […] É uma forma deles mostrarem: ‘você fez isso com a gente, agora você não merece que a gente vá atrás de você’ […], mas eu creio, em nome de Jesus, eu saindo daqui vou mostrar a diferença”.
‘Falta de estar com o filho, colocar a roupinha pra ir pra escola’
Aos 51 anos, Márcia é mãe de quatro filhos e não os vê há quase três anos.
Estevão Mamédio/g1
Márcia* tem 51 anos e foi presa na Rodovia Fernão Dias há quase três anos. Desde que foi condenada e levada para Mogi Guaçu, onde cumpre pena por tráfico de drogas, nunca mais viu os quatro filhos, dos quais três são menores de 18 anos. Diferente de Roberta, porém, as notícias demoram, mas não deixam de chegar. O problema, para ela, está na distância de casa.
“Meu contato com a minha família é através de cartas, mas o contato mesmo físico, nesses dois anos e sete meses que eu estou, não tive contato. Fica difícil o deslocamento. A minha mãe já é uma pessoa com mais idade, acabou ficando com meus filhos. Fica bastante complicado, fica difícil pra poder se deslocar”, diz com a voz séria.
Nas correspondências, as novidades sempre são boas. Os filhos estão bem, estudando. A vida continua do lado de fora. O coração de mãe, porém, está sempre apertado. “Quando você se vê assim, separado abruptamente, é bem difícil. A gente vai tendo esses contatos por carta, que é esporádico, é difícil também. E é o que vai acalentando durante os dias”.
Essa não é a primeira vez que Márcia é presa e precisa conviver com mulheres, como a própria afirma, tão diferentes dela. São hábitos e costumes de outras famílias que a fazem querer estar mais perto dos seus. Afirma, no entanto, que a solidariedade reina entre as grades e que é possível viver em paz ao lado das companheiras de cárcere.
“Mesmo pra quem não tem essa questão do contato, da visita própria, geralmente, você acaba conhecendo o familiar do outro, de tanto que a pessoa fala, né? E aí, na visita, a pessoa comenta de alguma outra companheira que tá aqui dentro. Ah, leva, sei lá, uma sobremesa pra fulano que tá aí dentro e tal. Então, tem essa troca muito grande”.
A experiência da mãe de quatro filhos não é permeada por solidão, mas, sim, solitude. Márcia diz que gosta de ler e se ocupa nos livros. Entretanto, como não poderia ser diferente, sente saudade, muita. Sente “falta de estar com o filho, acordar, colocar a roupinha pra ir pra escola” e, por isso, conta os dias para reconquistar a liberdade. “Não tem preço, literalmente”, declara.
‘Penso neles toda hora’
Mãe de um casal de 7 e 9 anos, Júlia foi presa com a esposa e aguarda julgamento há seis meses.
Estevão Mamédio/g1
Acusada de tráfico de drogas, Júlia* está presa há seis meses à espera de julgamento. Espera também por alguma notícia dos filhos, um casal de 7 e 9 anos, dos quais ela não ouve falar nem por carta. “Angustiante. Triste. Me parte o coração. Penso neles toda hora e é uma coisa onde que… Na verdade, eu nunca me vi nesse lugar até então. Foi, infelizmente, uma fatalidade que aconteceu”.
Em 180 dias de prisão, nunca recebeu uma visita ou correspondência que amenizasse a saudade. Diz que um envelope com novidades seria suficiente para afastar a tristeza. Mas, pelo menos, não está sozinha. Foi detida com a esposa e, juntas, tentam fazer amizades enquanto vivem a expectativa de se verem livres novamente.
“Aqui, até então, tem muitas pessoas que dão um certo apoio pra nós, sabe? Muitas pessoas que estão aqui, há muito tempo também, que não recebem uma carta sequer, entendeu? […] Isso, às vezes, acaba trazendo uma certa sensação de esquecimento e solidão pra nós, mas isso a gente acaba meio que suprindo com uma certa conversa, com um diálogo, um conselho amigável”.
“Viemos juntas e ela me dá muito apoio aqui dentro também. Então, assim, eu e ela, a gente só está esperando ao dias pra nós estar realmente podendo fazer tudo diferente. É que ela me apoia e aqui dentro eu apoio ela”.
Com os olhos marejados e a voz baixa, tímida, Julia detalha que a distância e as condições financeiras são empecilho para que os parentes levem um abraço pessoalmente. Ela concorda que há uma sensação de abandono dentro das celas e, apesar das dores, não deixa de se alegrar pelas presas que têm a oportunidade de rever quem amam.
“[Quando alguém recebe visita] é uma sensação tão bonita de se ver a companheira feliz, entendeu? Então, isso meio que emociona a gente também, sabe? Eu não vou falar que eu fico triste. Bate um certo, tipo, pô, poderia ser eu. Mas eu fico muito feliz quando eu vejo uma das companheiras recebendo uma visita pela primeira vez, porque é uma sensação muito alegre, muito feliz”.
*Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas, que preferiram não se identificar.
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