Masterplan e Boulevard do Mané Garrincha foram trocados por lucro fácil

Masterplan e Boulevard do Mané Garrincha foram trocados por lucro fácilJorge Eduardo Antunes

O discurso da insegurança jurídica permeia a vida nacional, especialmente quando o poder público modifica regras sem nenhum sentido, prejudicando investimentos. Mas há outra face nesta discussão, pois o mesmo ocorre no sentido contrário. Exemplo claro ocorre no chamado Boulevard Monumental, espaço que seria criado no complexo do Estádio Mané Garrincha e que vem sendo desvirtuado na surdina, ao longo dos últimos anos – incluindo a entrega de um idealizado emprório para o Grupo Costa, especializado na construção e gestão de atacadões, como o GPS|Brasília mostrou na última quinta-feira (19).

A punhalada na cidade foi detida pelo governador Ibaneis Rocha, que assinou, na segunda-feira (23), decreto que redefine as regras de uso e ocupação do solo no Setor de Recreação Pública Norte (SRPN), pondo fim à farra que vem sendo instalada no local. A partir de agora, projetos para a região precisarão seguir requisitos estabelecidos pelo Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB), assim como o Masterplan da Arena BSB, resultado de concurso público. Antes disso, os alvarás que permitiram a construção do atacadão no coração de Brasília foram suspensos na última sexta-feira (20) pela Central de Aprovação de Projetos (CAP), órgão ligado à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação (Seduh).

A atenção ao Masterplan da Arena BRB, porém, nunca foi respeitada pela concessionária do espaço. Ao longo dos cinco anos que está à frente da gestão do complexo esportivo, a requalificação do complexo esportivo e de lazer foi ignorada. Sorrateiramente, o projeto vencedor do Concurso Nacional de Arquitetura e Paisagismo, organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), foi esquecido e, aos poucos, transformado em qualquer coisa que pudesse dar lucro fácil e rápido. A requalificação da área ficou em último plano.

A humanização do espaço, prevista pelo Masterplan, foi deixada de lado nestes cinco anos
A humanização do espaço, prevista pelo Masterplan, foi deixada de lado nestes cinco anos. Foto: Reprodução

No Termo de Referência do concurso, o representante da Arena, Richard Dubois, fazia muitas promessas. “Nossa determinação e esforço para materializarmos a empreitada, que ora se inicia com esse concurso nacional de projetos, ecoa o espírito inovador da cidade sonhada por Juscelino Kubitschek, encampada por Israel Pinheiro, Bernardo Sayão e Ernesto Silva, idealizada por Lucio Costa e definitivamente qualificada pela arquitetura de Oscar Niemeyer”, escreveu.

“Acatamos e acolhemos com entusiasmo a ideia de um concurso nacional para a intervenção na nossa cidade Patrimônio Cultural da Humanidade. (…) Para tanto, este Concurso para Requalificação do Complexo Esportivo e de Lazer Arena BSB deve materializar a visão de uma Brasília mais acolhedora aos seus cidadãos, aos turistas e ao empreendedorismo, com foco na criação de bem-estar, saúde e desenvolvimento social, por meio da criação de empregos diretos e geração de riquezas”, cita o texto, para completar mais adiante: “Uma Brasília que vai diversificar sua matriz econômica ao passo que amplia o horizonte de oportunidades de lazer, encontro, e para a prática desportiva tão querida dos brasilienses. Tudo isso com espaços urbanos, arquitetônicos e paisagísticos altamente qualificados, que reforcem a bela e indissociável relação com a natureza que o projeto de Lucio Costa sempre buscou realizar”.

No papel e na ideia, a proposta do concurso era abrangente e coerente: requalificar uma área pública gigantesca, prevendo um Boulevard integrado aos parques de Brasília. No espaço, haveria lojas e serviços, como teatros e cinemas. A ideia original do chamado empório, que estava virando atacadão, tinha como inspiração locais com a pegada do Eataly, instalado em São Paulo.

Mas, como dizia o inesquecível poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, “no meio do caminho tinha uma pedra”. Logo após escolhido o vencedor, aprovado o projeto e obtido o alvará, a administração da Arena sinalizou “mudanças”. As alterações, claramente, comprometiam o projeto, o que causou o afastamento de muitos envolvidos na requalificação do espaço, alguns deles ouvidos pelo GPS|Brasília.

O projeto que venceu o concurso tem uma espinha dorsal visivel: a criação de uma grande plataforma, unindo mirantes e belvedere. O Boulevard seria um imenso passeio público que, obviamente, não geraria área rentável. Começaram, então, solicitações para encher o espaço de âncoras comerciais e penduricalhos. A plataforma norteadora e de interesse público foi sendo colocada em segundo plano.

Em vez de Boulevard, Mané Garrincha tem cercas e virou estacionamento de ônibus
Em vez de Boulevard, Mané Garrincha tem cercas e virou estacionamento de ônibus. Foto: Jorge Eduardo Antunes

Cinco anos depois de concedido, não há belvedere ou boulevard no estádio. Há bolas de concreto cercando o espaço, cercas de alumínio e muita desordem. Não há circulação livre de pedestres e boa parte do estacionamento é ocupado por ônibus. Já se alugou área para circos, parques de brinquedos infláveis e até uma pista de kart, voltada para o Tribunal de Contas do DF, foi instalada.

Não fosse o escândalo provocado pela entrega de uma área ao Costa Atacadão, os desmandos poderiam trazer ainda mais alterações no Boulevard. Afinal, muita coisa vem acontecendo no local, exceto intervenções alinhadas ao projeto vencedor do concurso – e isso também é uma insegurança jurídica, pois o cidadão não recebe o que efetivamente pode beneficiá-lo.

O Masterplan não previa a instalação do Mané Mercado
O Masterplan não previa a instalação do Mané Mercado. Foto: Reprodução

Mané Mercado não estava previsto Erguida para atender a imprensa que cobria parte das competições dos Jogos Panamericanos Rio-2007 realizada em Brasília, a estrutura provisória foi reaproveitada, o que não estava previsto no projeto vencedor do concurso. O GPS|Brasília apurou junto a arquitetos que o Mané Mercado não integrava o chamado “segundo eixo principal do complexo”, ligando o Autódromo Nélson Piquet ao Parque da Cidade.

Essa violação do projeto fere o compromisso com a coisa pública. Mas como o que norteia a gestão do espaço é o lucro, foi feito um arremedo. O projeto previa uma visão diferenciada de investimento, focada em parques, bens públicos, lazer e reunião de pessoas. Assim, o principal motivador, que gera público para todas as outras coisas do Boulevard, foi deixado de lado trocado pelo recurso fácil e rápido, mesmo com a liberação dos pagamentos da Arena ao GDF até 2026.

Sem a visão de que a proridade é o público, o que tem valor pra cidade, o que valoriza e se alinha com premissas do tombamento de Brasília, tudo o que era poderia ser aproveitado nessa intervenção no coração do Plano Piloto foi deixado de lado. “Até hoje nos perguntamos onde está o investimento no paisagismo incrível que foi pensado pra constituir parques, áreas sombreadas, espaços de permanência e lazer”, questiona um arquiteto à reportagem.

No termo de referência do concurso, o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) citava que havia “um histórico de melancólico abandono e decisões técnico-políticas questionáveis, em especial relacionadas ao Estádio Nacional de Brasília Mané Garrincha” e esperava que o resultado fosse “a melhor forma de equacionar o complexo desafio de harmonização, dentre outros, da viabilidade de um empreendimento deste porte à sensibilidade inerente ao local”.

Já Richard Dubois, da Arena, no mesmo documento, dizia sobre o Boulevard, ambiciosamente, que “toda grande metrópole tem sua referência de entretenimento, lazer, cultura e encontro: a Lapa, Vila Madalena, Puerto Madero, Las Ramblas, Champs-Élysées, Broadway”. E prometia: “Com o projeto vencedor deste concurso, Brasília se habilita para este seleto grupo”.

Não fosse a imprensa, a nossa referência seria um atacadão.

 

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