25 de Maio: Rememorar África, não celebrá-la

O 25 de Maio, conhecido como o Dia de África, não deveria ser um ritual festivo, mas um momento de silêncio. Um intervalo sagrado no ruído do mundo. É tempo de rememorar – e rememorar não é celebrar.

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ensaio de Severino Ngoenha, Filomeno Lopes e Ergimino Mucale

O 25 de Maio, conhecido como o Dia de África, não deveria ser um ritual festivo, mas um momento de silêncio. Um intervalo sagrado no ruído do mundo. É tempo de rememorar – e rememorar não é celebrar. Celebrar pode ser exaltar, festejar, esquecer-se. Rememorar, pelo contrário, é dar corpo à memória, é reabrir a ferida da história para perguntar: onde estamos? Onde queremos ir?

Esta data exige de nós uma atitude quase espiritual: um derretimento interior, uma reflexão ética e política. Rememorar significa, acima de tudo, olhar de frente para a nossa história e assumi-la como projeto – e não como lamento.

O primeiro gesto da consciência histórica africana -se quer ser digna de tal nome- deve começar onde o povo sangra, onde o povo grita, onde o povo ainda sonha. E a filosofia africana, se quer nascer do ventre da nossa história, deve erguer-se sobre três alicerces de memória que não se excluem, mas se iluminam mutuamente: a memória da dor, a memória da grandeza, e a memória da promessa. Negligenciar uma delas é distorcer o sentido da nossa luta, da nossa filosofia e da nossa política.

A construção de um pensamento africano contemporâneo, político e filosófico, exige que a memória seja não apenas um arquivo do passado, mas um instrumento de lucidez e de ação. 

 Os jovens africanos conhecem mal a história do continente. E não é culpa deles: é nossa, dos professores, dos pedagogos, dos intelectuais. Reduzimos a história africana à Conferência de Berlim, ao colonialismo europeu e ao neocolonialismo atual. Não ensinámos devidamente o longo período da escravatura – nem a ocidental nem a árabe – nem os impérios, nem as cosmologias, nem os sistemas de justiça africanos. Saltamos diretamente da dor para o presente, sem mapa, sem sentido, sem rumo.

A dor africana é profunda, longa, estrutural. A escravatura foi desumanização total: transporte forçado, separação familiar, submissão absoluta. Mas esquecemos os sete séculos de escravatura árabe, ainda mais cruel na sua obsessão pela castração do homem negro. Não era apenas servidão: era o apagamento deliberado da sua descendência. A escravatura europeia foi a castração espiritual: redução das línguas africanas em dialectos, das crenças em superstição, dos culturas em folclore.

A violência do tráfico negreiro prolonga-se no colonialismo europeu, que dividiu territórios com réguas em Berlim e construiu impérios com ferro, chicote e cruz. A dor continua nas independências traídas, onde as elites substituíram os colonos mas conservaram os mesmos sistemas de opressão. Como avisara Frantz Fanon, “o colonialismo não termina com a bandeira nacional, se não se transformam as estruturas internas da dominação”.

A dor africana não é apenas um passado: é um presente prolongado, tornado norma. Ela habita os corpos famintos de Cabo Delgado, os corpos escravizados na Líbia, os corpos afogados no Mediterrâneo. Ela habita a criança que morre de fome no norte de Moçambique enquanto se exporta gás. Ela habita o jovem que vende o corpo na África do Sul por não ter alternativa. Ela habita o velho combatente que assiste à degeneração da luta por ele iniciada.

A memória da dor não deve ser negada nem estetizada. Ela é um grito ético que deve ecoar na consciência histórica africana. É, como diria Frantz Fanon, a lembrança da ferida que ainda sangra, e que, por isso, exige não revanche, mas justiça e reparação. Não justiça apenas dos tribunais (jurídica), mas justiça ética e política. Para que o sofrimento dos povos não tenha sido em vão, é preciso desmontar os sistemas que perpetuam o colonialismo sob bandeiras africanas.

Mas a África não nasceu da dor. A África não é apenas vítima: foi e é fonte de civilizações. Antes da escravatura e do colonialismo, houve uma África livre. O Egito, berço da filosofia e da matemática, não é herança dos gregos, mas da África negra. Cheikh Anta Diop desmontou cientificamente o mito de um Egito “branco” e reclamou para África a centralidade da civilização.

Mas também houve o Gana, o Songhai, o Zimbábue, o Monomotapa. Civilizações de ciência, de justiça e de filosofia. Civilizações que cultivaram o Maat, o princípio de equilíbrio e verdade, e que formularam  -oralmente- as primeiras cartas de direitos humanos, como a Carta de Kurukan Fuga. Tivemos impérios de saber e organização política: o Império do Mali, com Timbuktu como centro de sabedoria e escrita; o reino do Kongo, com diplomacia estruturada; o reino do Monomotapa, símbolo de riqueza e autogoverno. Antes da escravidão, fomos berço do mundo. 

A memória da nobreza africana -que o colonialismo tentou apagar e que o neoliberalismo tenta ridicularizar-  não é nostalgia, é espelho; é antídoto contra o complexo de inferioridade. Ela é um arquivo de sabedoria prática e metafísica, que pode ser mobilizada para a reinvenção das instituições e das relações sociais.

Como ensinava Marcien Towa, a filosofia africana não deve ser repetição de modelos europeus, mas deve resgatar essa grandeza como possibilidade política, e não como vitrine folclórica. Ou como dizia Kwame Nkrumah, “a unidade da África é a continuação da nossa grandeza anterior, agora em chave moderna”.

Não se trata de negar os erros do passado africano, mas de reconstituir o fio da nossa humanidade negada, de uma dignidade enterrada. O nosso desafio é fazer da tradição uma possibilidade, uma utopia critica (Eboussi Boulaga) e não uma prisão. É traduzir os saberes ancestrais em instrumentos de resistência contra o cinismo moderno: Sair da noite colonial sem cair na obscuridade da modernidade cúmplice (Frantz Fanon).

Rememorar é recordar a grandeza histórica do continente. É ensinar aos jovens que a história da África não é a história da servidão, mas uma história interrompida. A dor foi longa, sim, mas é um epifenómeno, não o fundamento.

Mas a memória africana não é arqueologia do passado morto. A verdadeira memória não nos convida a olhar para trás como quem contempla ruínas. A verdadeira memória é o futuro ferido -aquilo que deveria ter sido, mas ainda não é. A memória como futuro ferido.  Mas também, como ensinaria Amílcar Cabral, é a dor que funda a necessidade de “voltar às fontes” — não para lá ficar, mas para de lá partir com verdade.  É, como dizia Paulin Hountondji, uma energia que exige projeto.

No meio do sofrimento, surgiram os profetas/visionários. Back to Africa, de Marcus Garvey; o federalismo de W. E. B. Du Bois; o pan-africanismo de Nkrumah; o “rendez-vous du donner et du recevoir” de Senghor. Todos apontam para uma África reencontrada consigo mesma. Uma África que não quer imitar o Ocidente, mas  propõe outras formas de pensar o tempo, o poder, o humano e o mundo.

A verdadeira memória não é olhar para trás, é olhar para o que ainda não chegou, mas deve chegar.

Mais do que lembrar o que foi, a África precisa lembrar o que prometeu ser. A memória da promessa não é nostalgia, é responsabilidade. Ela exige que a geração presente seja fiel não ao que herdou, mas ao que foi sonhado.

É esta memória que deve alimentar uma nova filosofia política africana, para que não seja cópia nem resistência, mas invenção e criação que (re) articula o ser como relação, o sujeito como ser através-dos-outros. Esta é a memória da utopia, dos sonhos interrompidos, dos projetos inacabados, dos profetas assassinados, das canções que ainda não se cantaram. 

A África tem uma promessa por cumprir. Promessa de se fazer continente de homens livres, de mulheres inteiras, de juventudes que não emigram para morrer no mar, mas que constroem aqui o seu lugar. Promessa de liberdade, de justica e de paz.

Essa promessa foi feita por Mondlane, por Lumumba, por Machel, por Cabral, por Sankara, por Nyerere, por Nkrumah (…). Mas essa promessa foi enterrada -pela corrupção interna, pela pressão externa, e pela indiferença global. É preciso desenterrá-la. Desenterrá-la como se desenterra um corpo sagrado: com reverência, mas também com urgência. Fazê-la prosperar como ideia e prática.

Reerguê-la como base para uma nova filosofia africana, não imitadora de sistemas alheios, mas criadora de caminhos próprios: Ruptura com a colonialidade, com a ganância, com a arrogância epistémica.

A reconstrução da África passa pela fidelidade a essa promessa ferida. Mas essa fidelidade não é contemplação, é acção. É repensar a educação, os partidos, as fronteiras, os modelos de desenvolvimento. É romper com o mimetismo e forjar instrumentos próprios: políticos, jurídicos, epistemológicos. A memória da promessa é, pois, um chamamento ético: ou construímos o que jurámos aos nossos mortos, ou merecemos o silêncio dos que hão de nascer!

O que está em jogo hoje, já não é apenas a libertação do jugo colonial ou imperialista, mas a reconstrução espiritual, institucional, cultural e ontológica da África enquanto projeto de humanidade. O novo Panafricanismo deve descolonizar os imaginários, as epistemologias e os paradigmas de desenvolvimento que os Estados africanos herdaram do Ocidente e continuam a reproduzir. Isso implica a construção de uma ontologia africana própria, capaz de pensar a política para além da matriz liberal-individualista que desagrega e fragmenta os nossos tecidos sociais.

O novo pan-africanismo implica voltar a Nkrumah e dizer: A unidade africana não é um sonho -é uma condição para que cada país seja verdadeiramente livre. A soberania continental não é um luxo,  é uma necessidade para controlar os recursos e evitar novas escravidões.

Hoje, novos profetas emergem, novos ventos sopram, sobretudo vindos do Sahel. São imperfeitos, frágeis, inacabados. Mas trazem algo de novo: a recusa da subalternidade e o desejo de pensar e construir a África com as próprias mãos. 

Os líderes em Burkina Faso, Mali e Níger desafiam o status quo pós-colonial, expulsam as presenças militares estrangeiras e reclamam o direito de refazer o destino africano com cabeça africana e mãos africanas. Estes líderes  -Ibrahim Traoré, Assimi Goïta, Abdourahamane Tchiani – não são perfeitos, mas são representativos e sinais proféticos de uma África que se ergue, hirta, contra as necro-politicas do ocidente (Achile Mbembe). Uma África que se  recusa morrer; um a África que, apesar dos pesares, se obstina a viver!

O 25 de maio é uma chamada/convocatória a África, a ser fiel a sua tua dor, à sua grandeza e à sua promessa. Fiel a Lumumba, a Cabral, a Biko, a Sankara, a Machel, a Nkrumah (…); Fiel aos que resistem no Sahel;  Fiel a sua missão e a promessa por cumprir: paz, progresso e felicidade dos povos (cabral).

Com a lucidez de quem viveu a História por dentro, Pedro Pires (antigo presidente de Cabo Verde) uma vez questionou: “O que vocês fizeram com a independência que nós conquistámos com tanto sacrifício?” e Fanon já nos tinha intimado: “Cada geração tem a sua missão: ou a realiza, ou a trai.” Talvez tenhamos traído. Talvez a nossa geração não tenha sabido preservar, nem reinventar, o sonho de liberdade que herdámos dos nossos mortos heróicos. Mas esse fracasso – e reconhecê-lo já é um ato de lucidez – não pode, não deve, servir de desculpa à juventude de hoje.

A missão permanece. Ferida, sim. Mas viva. E clama por continuidade. A juventude africana de hoje não tem o direito de se esconder por detrás dos nossos erros. A História não espera. O que está em jogo é mais do que revoltas momentâneas ou mudanças de regime: é a liberdade de todos os africanos de hoje e de amanhã. Vocês devem isso – devem-no aos que morreram escravizados sem sepultura; aos que tombaram na luta pela independência sem ver o nascer da pátria/África; aos que, nas ruas e nos desertos do Sahel, ainda hoje resistem sem pedir licença à História. Mas mais do que isso: vocês devem-no a vocês mesmos. E devem-no aos vossos filhos. 

A nova geração só será digna do nome “juventude africana” se souber tornar-se profética  -não porque repete o passado, mas porque ousa inaugurar um novo futuro. 

A memória não é o passado, a memória é o futuro ferido e a fidelidade a promessa é o nome da nossa liberdade! 

ensaio de Severino Ngoenha, Filomeno Lopes e Ergimino Mucale

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