Palco 360º, DJ no centro do público, sem repressão policial e fechado: baile funk sai das ruas e vira evento privado em SP


DJs defendem o novo formato por proporcionar que jovens de periferia frequentem outras regiões em busca do ritmo, longe da repressão policial. Mas cobram o governo, que marginaliza o gênero, transformando os bailes de rua em locais perigosos. Primeira edição da festa Submundo em SP.
Divulgação/ Submundo 808
A mesa do DJ no centro do público, a música extremamente alta e privado. O que poderia ser uma festa de música eletrônica em São Paulo, desta vez, é um pancadão.
No último ano, o funk paulista, depois de dominar as ruas, também passou a marcar presença em ambientes fechados e em regiões mais centrais. Eventos como a Submundo 808 e o Boiler Room vêm esgotando ingressos na capital e chamando a atenção do público.
Algumas características desta estética vão contra os pilares do baile funk, que são manter a festa na rua, de forma gratuita. Mas, por outro lado, os eventos vencem um trauma deixado nos bailes de rua em 2019, quando a polícia de São Paulo matou nove jovens na dispersão de um baile em Paraisópolis.
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Para quem está tocando e produzindo as festas:
Os eventos fechados são uma maneira de exportar a música de baile para outros locais;
Atraem mais moradores das periferias para regiões da cidade que normalmente eles não frequentariam;
Dão mais visibilidade para produtores periféricos;
São consideradas mais seguras.
Mas também:
Privam um evento cultural que nasceu para ser oferecido de maneira gratuita para a população;
Expõem o gênero do funk a locais mais rigorosos em aceitar o ritmo.
Na capital paulista, na sexta-feira (6), rolou uma edição do Boiler Room com um lineup quase que inteiramente formado por DJs de funk: Afreekassia, Dj Blakes, Dj Caio Prince, Dj Dayeh, Dj GBR, Dj Lorrany, Kenan e Kel, Kyan, Lys Ventura, Mc Luanna, Mc PH, Mc Tha, Mu540 e Nogueira Dj.
E, nos últimos meses, São Paulo também vem recebendo edições da Submundo 808, um selo de Campinas, no interior do estado, que faz festas privadas de funk. A Submundo ficou tão popular que passou a receber em suas edições em Campinas ônibus fretados da capital com pessoas que iriam para a festa. Nas edições paulistanas, foram mais de 10 mil ingressos vendidos em menos de 10 minutos.
Na prática, o que isso significa? O funk paulista entra em ambientes que o aproximam de vez da música eletrônica, inclusive, passando a ter o mesmo público dessas festas.
Privatiza, mas fica seguro
Festa Submundo privada em Campinas, no Interior de SP.
Divulgação/ Submundo 808
Caio Prince, de 23 anos, DJ, produtor musical e também estudante de ciências sociais, avalia que as festas proporcionam uma segurança que o poder público não consegue oferecer nos bailes nas ruas.
Caio é DJ de funk, mas começou a sua carreira já tocando em locais fechados. “Eu comecei a tocar na cena underground, mas sempre colei nos bailes de rua. E entendi desde o começo que não era seguro, principalmente pela marginalização do funk. Que sofre com diversas questões estruturais, políticas, que fazem com que a gente não se sinta confortável, mas é um lugar de lazer.”
“Mas independentemente de tudo, foi no baile de rua que eu me conheci como artista. Ali é a raiz de tudo, onde o funk se desenvolve todo os dias. Então, apesar de existir muita violência, repressão policial, de ser difícil colar desde o massacre no Paraisópolis, a gente tenta manter vivo. E precisamos ser lúcidos: o funk está quebrando barreiras musicalmente, mas na realidade da favela é um retrocesso”, afirma.
Ainda segundo Caio, a sensação é que os bailes são sempre tratados como se fossem algo ilegal.
“Não temos espaço, parece que tudo o que fazemos é ilegal. A Secretaria da Cultura, no momento que quer bate, no peito para dizer que o funk é lindo, que a nossa cultura é linda. Mas quando a gente está lá, no nosso momento de lazer, a realidade é diferente”, completa.
Nas eleições de 2024, por exemplo, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) e o empresário Pablo Marçal (PRTB) se aproximaram de alguns artistas consagrados e produtoras de funk durante a campanha, apesar de serem críticos do movimento cultural.
Baile fechado
Na primeira edição na capital, em outubro deste ano, o Submundo 808 recebeu 5.800 pessoas, segundo os organizadores. O que toca lá é funk de baile, e boa parte dos DJs que participam também são de baile.
“A gente começou com uma festa de 600 pessoas, nas outras edições os números vêm crescendo. Ela nasceu em Campinas, com uma experiência 360º, e o nosso foco é a festa de funk, com o DJ no centro da pista. Nas nossas últimas edições marcadas para o fim de ano, uma em Campinas e duas em São Paulo, foram mais de 3.000 ingressos vendidos em 10 minutos, em cada uma das datas”, afirma Vinícius Mariano, um dos sócios da festa.
Além dele, a produção ainda conta com DJ Clei (Cleison Arcanjo), DJ Tresk (André Miquelotti), Pety, DJs Kenan e Kel, e Jorge.
Neste ano, ainda haverá Submundo nos dias 14 e 21 de dezembro, no Sonora Garden, no Canindé, na Zona Norte. As duas edições já estão com ingressos esgotados.
Dj Lorrany tocando na Submundo em SP.
Divulgação/ Submundo 808
Na Submundo:
Vários DJs tocam numa mesma noite;
Geralmente é apenas uma pista;
A mesa do DJ fica no meio do público;
Antes da apresentação de cada DJ, um mestre de cerimônia faz uma pequena introdução sobre o set;
A maioria dos sets são gravados e publicados no canal do Youtube da festa.
Segundo Vinicius, o diferencial é o DJ no centro do público, uma característica muito comum no boiler room (leia mais abaixo) e que gera proximidade com o público.
“Vira uma experiência de festa tanto para o público como para os artistas. Eles saem do palco dizendo como é bom tocar na Sub. E nasceu porque Campinas é uma cidade elitizada, e a gente sentia a necessidade de ter um rolê underground, com uma estrutura boa, qualidade de som, de tela, uma estrutura que impactasse. Tudo isso para fortalecer a cena e enaltecer a música periférica”, afirma.
Eles chegaram à capital após muitos pedidos do público, que sentia a necessidade de uma festa inteiramente voltada para o funk. Eram tantas pessoas indo de São Paulo para o interior que a própria festa abriu espaço nas redes sociais avisando sobre os ônibus que estavam se dirigindo à festa.
“Essas caravanas não saíam só de São Paulo, mas de ao menos 10 cidades próximas a Campinas. Acho que a nossa ideia de fato é levar a música periférica para lugares que ela ainda não acessou. Então, com a festa, a gente está em lugares em Campinas e em São Paulo que eu nunca imaginei que o ritmo estaria”, afirma Vinicius.
Ele diz ainda que tenta manter o público do funk e da cena underground no evento, oferecendo ingressos gratuitos e por um valor acessível, cerca de R$ 40.
“A gente sabe que é um público que muitas vezes não tem uma renda alta, então a gente tenta manter um equilíbrio. E também sabemos que essa festa pode chegar a um outro público. A gente, por enquanto, tem um público nichado, criamos a festa pensando neste público e reforçamos isso na cultura da festa. Desde a base, queremos promover acesso igual.”
Tocar no meio do povo faz diferença? Para Lorrayne Caroline Ferreira Dos Santos, de 26 anos, a DJ Lorrayne, é uma experiência “única”.
“Tocar em um palco 360º você sente bem mais, interage com o público. Tudo vibra mais forte. Se está bom, você sente mais, se está ruim, você também sente. É muito importante para a cena do funk sair das periferias e invadir outros lugares, seja o Centro, outras quebradas, seja lugares que a gente sofria discriminação”, afirma.
E completa: “Tem uma importância de estar em lugares fechados por que, de certa forma, demonstra um lugar de ascensão. Eu levo o funk aonde quer que eu esteja. Neste ano, fiz a minha primeira Eurotour e foi para levar a forma como eu transmito a minha arte para as pessoas”.
Funk boiler room
A Submundo segue a estética boiler room, que é um projeto nascido em Londres, na Inglaterra, que transmite apresentações ao vivo de DJs de música eletrônica. O projeto foi criado em 2010.
O boiler virou uma verdadeira janela do mundo para mapear DJs de diversas regiões e, geralmente, todas as apresentações gravadas têm ingressos disponíveis para o acesso do público, algumas delas até de forma gratuita. No Brasil, o boiler já realizou apresentações em São Paulo, Rio e em festivais de música.
E assim como boa parte da música underground gringa, o boiler também se apaixonou pelo funk. Por lá, nos últimos três anos, já foram gravadas apresentações de MC Carol, Vhoor, Badsista, o carioca Ramon Sucesso e, mais recentemente, o Dj K.
Se é mais seguro e uma verdadeira janela para expansão do funk no mundo, qual o problema das festas fechadas? Para Mu540, um DJ de funk já conhecido na noite paulistana e presença constante em festivais de música, tira a responsabilidade do governo de agir para tratar o funk como lazer.
A existência de uma festa fechada de funk não inibe a continuidade dos bailes, mas abre discussão do porquê uma festa precisa sair da rua para ser tratada como lazer.
“Tocar na favela é tocar na favela, nunca vai ser igual em um lugar privado. É uma sensação única, parece que você está nascendo de novo. Mas quando a gente começa a tocar para pessoas ricas, com mais grana, eu me sinto um serviçal. Mas eu preciso de dinheiro, a gente precisa de dinheiro, tocar de graça não se sustenta. Então enquanto a gente não tiver uma ajuda governamental voltada para o funk, vamos ter que ficar nesse movimento de fazer evento privado”, afirma.
“O mundo ideal seria um movimento dos DJs de outros estilos, dos locais que a gente está entrando, tipo de house, tocar também na favela, fazer o dinheiro rodar na favela. A gente está indo para vários lugares, eles poderiam vir para a gente. Quem sai da favela para rolê vai sair para gastar. Por que não dá para ir gastar dinheiro na favela também?”, continua.
O funk e a música eletrônica não se bicam?
Na verdade, se bicam e querem continuar se bicando.
Não é novidade que o funk é um gênero que sofre com o preconceito no mundo da música, até mesmo dentro do próprio funk (o g1 já falou sobre isso aqui). E na cena da tradicional eletrônica não é diferente.
O DJ Mu540 tocou com Mochakk – um dos nomes brasileiros que vem se destacando na cena mundial do tech house – no festival Só Track Boa, em junho deste ano. E apesar de o set dos dois ter ficado lotado, houve reclamação nas redes sociais.
O evento gerou uma discussão sobre o funk ser ou não música eletrônica. E também críticas de quem estava no festival, afirmando que o ritmo “não deveria estar ali”.
O Só Track Boa é um festival focado 100% na música eletrônica. A marca foi criada pelo DJ Vintage Culture e por Henrique Vaz. Neste ano, o festival incluiu um palco de funk, segundo eles, para quebrar o preconceito da música eletrônica tradicional. Até os DJs participaram da discussão, defendendo a entrada do gênero na cena.
Mu540 respondendo críticas no Instagram.
Reprodução
“O funk é música eletrônica. Eu faço exatamente a mesma coisa que o Alok. Sento na frente do meu PC, coloco no programa, boto sample, masterizo e exporto. É a mesma coisa. Quando você fala que o funk não é música eletrônica, isso é apenas preconceito”, afirma Murilo Oliveira Santos, o Mu540.
Dj Mu540.
Divulgação
Em entrevista ao g1, Mu540, que lançou recentemente o 4×4, um disco que mistura funk com house music, defendeu o gênero como música eletrônica. Não somente como um espaço a ser ocupado, mas também a ser recuperado.
“Eu acredito que os bailes de favela nunca vão deixar de existir. É uma coisa de graça. O que a gente está vendo acontecer são as pessoas da quebrada saindo para outros rolês, em Pinheiros, por exemplo. E essas festas também são nosso lugar, o que toca são ritmos nossos. O house music é música preta, principalmente das mulheres. Então eu quero ver Paulete Lindacelva tocando nesses festivais, Valentina Luz. A elite branca domina um gênero que é do povo preto e das minas trans, isso que está errado”, afirma.
Para a DJ Lorrayne, o gênero não é respeitado como uma vertente do eletrônico por ser uma música que nasceu nas favelas.
Dj Lorrany, trabalha com música desde os 14 anos.
Fábio Tito/ g1
“A gente tem todos os elementos da música eletrônica. É difícil para eles aceitarem essa atual condição do funk, mas é música eletrônica de periferia, e ela vai estar em qualquer lugar”, afirma.
Caio Prince diz que tocar em ambientes voltados para a música eletrônica muitas vezes expõe o artista a situações de preconceito.
Dj Caio Prince.
Divulgação
“Acho que tocar em uma festa de techno, house, é bom porque são locais que já estão ambientados com um som mais pesado, que é o funk que a gente toca. Mas tem vezes que calha de cair em um lugar que toca uma eletrônica mais tradicional, e a gente acaba recebendo uma onda de hate. Eles acham que o funk não pertence à eletrônica, porque é uma música branca.”
“Minha vida está sendo mudada pelo funk. Hoje eu toco em festas que os meus pais vão, e eles ficam falando: ‘Nossa, o funk que a gente ligava para a polícia reclamando do barulho está te levando para esses lugares’. Então acho que é isso que as pessoas no geral precisam entender”, completa.
Repressão nos bailes
Familiares das vítimas do “Massacre de Paraisópolis” fazem manifestação por justiça em frente ao Fórum Criminal Ministro Mario Guimarães, na Barra Funda, Zona Oeste de SP
WAGNER VILAS/ENQUADRAR/ESTADÃO CONTEÚDO
Pelo menos 16 pessoas foram mortas e 6 adolescentes perderam a visão em operações pancadão na região metropolitana de São Paulo entre 2012 e 2024. O levantamento faz parte da pesquisa “Pancadão: uma História da Repressão aos Bailes Funks de Rua da Capital Paulista”.
A última morte foi de um adolescente de 16 anos baleado na cabeça durante dispersão de um baile funk no bairro dos Pimentas, em Guarulhos, Grande São Paulo.
Repressão ao baile funk: ao menos 16 pessoas foram mortas e 6 adolescentes perderam a visão em ‘operações pancadão’ em SP, diz pesquisa
A pesquisa também releva o aumento em 1.771% do número de operações policiais em sete anos. Confira os dados:
2016: 1
2017: 1
2018: 29
2019: 74
2020: 141
2021: 139
2022: 131
Segundo a pesquisa, os dados mostram que as operações policiais são uma política ineficaz para aquilo que supostamente se propõe: impedir a ocorrência de bailes funk de rua. As ações de repressão também apresentam alto custo social e humano.
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