Série do Jornal Nacional explica como a imigração mexe com o sonho e com o voto do americano


‘O Sonho Americano’: conheça a história do hondurenho que deixou a namorada grávida para sustentar, dos Estados Unidos, a família. O Sonho Americano: imigrante de Honduras sonha em dar vida melhor para o filho
Em Washington, o repórter Felipe Santana encerrou nesta terça-feira (5) a viagem de motorhome de nove dias pelos Estados Unidos.
Para muitos americanos com quem a equipe do Jornal Nacional conversou, o sonho americano acabou. Pelo menos aquele sonho de uma listinha de coisas que você precisa fazer: comprar uma casa, um carro, ter dois filhos, ter um cachorro e comprar bens materiais para ser feliz. Para muita gente, não dá mais para pagar por esse sonho, o custo de vida ficou muito alto. Para muitas pessoas, ele simplesmente não é mais verdadeiro.
Esse declínio do sonho americano virou uma crise cultural que divide o país. É como se eles não soubessem mais quem são. Então, eles estão divididos tentando ou se agarrar ao passado ou ir para um futuro que não está bem delineado.
Mas sabe onde se gente vê essa chama do sonho americano ainda muito presente? No imigrante. E aí que o Jornal Nacional entra no tema da imigração. Muita gente tem medo do que está acontecendo na fronteira porque realmente o número de imigrantes aumentou muito, todo mundo sabe, e esse fluxo se mistura com o fluxo do tráfico de drogas – os Estados Unidos são o maior consumidor de drogas do mundo. Então, há crime e há violência na fronteira.
Mas nesse debate todo, o que pouco se fala nos Estados Unidos é sobre o imigrante em si. Ele, muitas vezes, é desprezado porque trabalha na limpeza ou trabalha na construção civil. Por isso, para fechar a série, o Jornal Nacional queria tratar do tema da imigração de um jeito diferente, com um olhar brasileiro. Olhar para um personagem, olhar para um imigrante, olhar do outro lado da história. Porque aí se tem uma visão melhor de mundo, e a gente consegue entender o que é esse sonho americano hoje. É o último episódio da série “O Sonho Americano”.
conheça a história do hondurenho que deixou a namorada grávida para sustentar, dos Estados Unidos, a família
Jornal Nacional/ Reprodução
Poucas vezes a gente ouviu a história de uma vida que mudou tanto em tão pouco tempo. Hoje, Gabriel trabalha construindo o teto sobre a cabeça de milhares de americanos que vivem na cidade de Chicago, no estado de Illinois.
“Quando cheguei aqui e vi um prédio, pensava que era a casa de uma pessoa só. Não sabia que eram apartamentos, porque, de onde eu vim, cada um tem sua própria casa”, diz.
Gabriel alugou um apartamento, comprou seu carro próprio, vai à igreja – a missa é em espanhol. Gabriel hoje vive o sonho americano.
É uma mudança muito grande desde que a equipe o conheceu. Foi em uma noite de maio de 2021, depois de Joe Biden assumir a Presidência. Nossa equipe estava no deserto, à beira do Rio Grande, que separa os Estados Unidos do México. Foi quando ouvimos o barulho de um remo contra a água.
“Esses botes atravessando o rio e chegando aos Estados Unidos são um retrato da imigração hoje em dia. São muitas famílias, muitos menores desacompanhados, que vêm para cá tentando um jeito legal de permanecer no país”, narrou o correspondente Felipe Santana na ocasião, no Texas.
Essa foi a primeira vez que o Gabriel pisou nos Estados Unidos. A partir daí, passamos os três últimos anos conversando com Gabriel.
Gabriel estava assustado porque a viagem não tinha sido fácil. Ele saiu do alto das montanhas de Honduras, um lugar sem eletricidade, sem água encanada, uma zona dominada pelos cartéis do tráfico. Saiu de moto de casa e foi até o povoado mais próximo, onde pela primeira vez na vida entrou em um carro. E, pela primeira vez, saiu de perto de casa. Pela primeira vez, viu as luzes noturnas de uma cidade com eletricidade. Pela primeira, vez cruzou a fronteira de país. Pela primeira vez, viu o mar. E, pela primeira, vez entrou em um barco na fronteira da Guatemala com o México.
“Começaram a nos assustar, dizendo que tinha gente ali que não era boa. Saímos correndo até que encontramos o carro que estava nos esperando”, conta.
Gabriel era um daqueles que vemos em imagens na TV.
“Em Monterrey, ficamos 14 dias presos no mesmo lugar. Era muita gente junta. Não me davam comida. Me batiam. Pensei que nunca mais ia sair dali. Aí eu fugi”, lembra.
Gabriel conseguiu outro coiote para levá-lo no resto da viagem.
“Ele me levou até a cidade de Reynosa. E alguém me pegou e disse que iríamos atravessar o rio em botes infláveis”, conta.
E Gabriel atravessou. Ele foi pego pela polícia. Mas esse era o plano. Como era menor de idade desacompanhado, poderia ficar nos Estados Unidos e pedir asilo. Ele foi levado para um abrigo ali perto. Depois, pela primeira vez na vida, pegou um avião.
“Foi horrível. Eu vomitei”, diz.
Ele foi levado para outro abrigo, até que foi liberado e embarcado em um outro avião até Chicago, onde já vivia a tia dele.
“Ela me deu cama, roupa, comida e também me colocou na escola”, conta.
Em Chicago, pela primeira vez na vida, ele viu um prédio com apartamentos, pela primeira vez subiu em uma escada rolante e em um elevador. Faz mais de três anos, mas Gabriel ainda espera uma audiência com o juiz. Porque é o juiz quem vai dizer se o Gabriel vai poder ficar nos Estados Unidos ou se vai ter que ir embora.
O sistema está tão sobrecarregado que, em média, um imigrante espera por dez anos. Enquanto isso, ele não tem autorização para trabalhar, mas paga impostos sobre tudo o que recebe. Imigrantes sem documentos pagam cerca de US$ 100 bilhões em impostos todo ano nos Estados Unidos. Só que não têm direito a férias, nem aposentadoria, nem acesso a serviço de saúde, nada.
Hoje, Gabriel sustenta a irmã Gabriela, o namorado dela, a sobrinha, e ainda manda dinheiro para a família em Honduras
Jornal Nacional/ Reprodução
São cerca de 11 milhões de pessoas na mesma situação. Dois milhões deles trabalham na construção de casas, como o Gabriel. Mesmo assim, há falta de moradia nos Estados Unidos porque não há quem as construa. Nas cidades que não têm imigração, os restaurantes não conseguem ficar abertos. E são milhões trabalhando na limpeza. 25% de todos os que trabalham nas fazendas não têm documentos. E eles ganham pouco. Mesmo assim, o Gabriel conseguiu juntar dinheiro para pagar pela viagem da irmã, de 17 anos.
“Quando ela chegou nos Estados Unidos, fizeram exames e deu positivo para gravidez”, conta.
Gabriela não sabia que estava grávida. Hoje, Gabriel sustenta Gabriela, o namorado dela, a sobrinha, e ainda manda dinheiro para a família em Honduras. E sente falta deles todos os dias. Gabriel não pode sair dos Estados Unidos.
“Às vezes, me dá vontade de voltar. Aí lembro como era difícil por lá”.
A equipe do Jornal Nacional foi longe para entender o que tirou Gabriel do lugar dele: Honduras. Na capital, Tegucigalpa, já temos as primeiras pistas.
O boneco representa o ex-presidente Juan Orlando Hernández, que está preso em Nova York por tráfico de drogas. Como vice-presidente, Kamala Harris esteve na posse da sucessora dele, Xiomara Castro. O marido dela é o também ex-presidente Manuel Zelaya. Quando assumiu, a presidente hondurenha cancelou o acordo com os americanos de extraditar os comandantes do tráfico. Meses depois, a imprensa conseguiu um vídeo em que o cunhado de Xiomara negocia com o tráfico dinheiro para a campanha dela.
Mas Gabriel vivia muito longe da capital. A equipe do Jornal Nacional contou com o apoio de uma jornalista local na viagem, que explicou que Honduras está na principal rota da cocaína nas Américas. Porque a Colômbia produz todo ano 2 mil toneladas da droga, que abastece o maior mercado do mundo, os Estados Unidos. O transporte da droga alimenta um mercado de trabalho enorme em um país em que metade da população vive abaixo da linha da pobreza.
A Colômbia produz todo ano 2 mil toneladas de cocaína, que abastece o maior mercado do mundo: os Estados Unidos
Jornal Nacional/ Reprodução
Depois de sete horas de asfalto, o pai do Gabriel encontrou a equipe do JN em uma pequena vila e seguiu com a gente, porque sozinhos não conseguiríamos.
“Muita gente aqui tenta ir para os Estados Unidos, mas nem todo mundo chega”, afirma.
A ponte é a última obra de infraestrutura. É pelas regiões montanhosas de Honduras que passam as rotas do tráfico, que se confundem com as da imigração. Por causa da disputa do tráfico, Honduras é um dos países com a mais alta taxa de homicídios do mundo.
Depois de duas horas e meia no caminho de pedra, se avista em cima da montanha um vilarejo de 17 casas. Em uma moram os pais do Gabriel. A mãe dele nos recebeu com baleadas. É o prato que o Gabriel mais gosta que a mãe dele faça para ele. A baleada é uma panqueca de feijão com ovo e queijo.
“Todos os pais gostariam de estar perto dos seus filhos, mas se eles tomam a decisão, não podemos impedir. Ainda mais sendo pobre e não podendo dar tudo a eles”, diz a mãe.
Muita coisa mudou desde que Gabriel foi embora. Com o dinheiro que ele manda, os pais conseguiram montar uma vendinha: compraram um freezer e uma geladeira.
“Quando o Gabriel estava aqui, não tínhamos eletricidade”, conta o pai.
Gabriel também comprou três vacas, um cavalo e um terreno que já está cercado. Agora, para descobrir o verdadeiro motivo pelo qual Gabriel se mudou para os Estados Unidos, a equipe do Jornal Nacional pegou carona de moto porque lá não se chega a pé.
Pelas estradas nas montanhas, os cartéis abrem trilhas para o transporte da droga. A equipe descobriu que um parente do Gabriel foi extraditado para os Estados Unidos por ser um comandante do tráfico. Se Gabriel tivesse ficado, ele corria o risco de ser também recrutado.
No fim da trilha, uma casa em cima da montanha. O filho de Gabriel só o conheceu por fotos.
“Eu estava grávida de um mês quando ele foi embora. Ele disse que ia para dar um melhor futuro para o nosso filho”, diz Karla Yanira.
“Agora não sou só eu. É ele também. Eu queria estar aí em todo o processo. Conhecer os hábitos e as manias. Eu nem sei se vai gostar de mim quando me ver. Com certeza vou precisar de muito tempo”, diz.
O correspondente Felipe Santana pergunta para Karla o que ela enxerga no futuro.
“Como assim?”, questiona.
Gabriel enxergou o que ele imaginava que fosse um futuro. Mas, nesse lugar de sonho, ele não é visto como um cidadão. Trabalha muito, ganha pouco, paga impostos, mas não tem direitos. Não pode conhecer o filho e sabe que pode ser mandado embora a qualquer momento.
Ainda assim, de todos que a equipe do Jornal Nacional conheceu nessa viagem, ele ainda é o que mais vê motivos para ter fé, para continuar e acreditar que ainda pode ser verdade o que chamam de sonho americano.
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