Segunda Guerra Mundial: 80 anos de uma vitória ainda contestada

Nas margens do Rio Volga, onde – em fevereiro de 1943 – a humanidade voltou a ter esperanças após quase de 3 anos de uma sequência invicta das tropas hitleristas na Europa, e o nazismo começou a ser derrotado na Batalha de Stalingrado, tremula hoje a bandeira tricolor da Federação Russa em um mastro de cerca de 20 metros de altura, bem no centro da atual cidade de Volgogrado.

Porém, todos os anos, na semana que antecede as celebrações do Dia da Vitória – como os russos chamam a Segunda Guerra Mundial em 9 de maio -, a bandeira russa é retirada e, em seu lugar, é hasteada a bandeira vermelha com a foice, o martelo e a estrela da União Soviética. Mais especificamente, a legendária “bandeira da vitória”, com a marca do 79° Regimento do Exército Vermelho, comandado pelo Marechal Georg Zhukov, que tomou Berlin de assalto, levou ao suicídio de Hitler e decretou a capitulação incondicional das forças nazistas.

Além disso, milhares de pequenas bandeiras da vitória são colocadas nos postes de luz por toda a cidade, fazendo par com as tricolores russas. Todos os anos, em dez dias marcantes da guerra – como o Dia da Vitória – a cidade muda de nome oficialmente e volta a se chamar Stalingrado. Placas são instaladas em diferentes pontos da cidade e a prefeitura se refere à cidade com seu antigo nome em documentos e atos oficiais. No último 15 de abril, o presidente Vladimir Putin assinou um decreto batizando o aeroporto internacional da cidade de “Stalingrado”.

Assim como em Stalingrado, semanas antes do Dia da Vitória, a capital Moscou também é plenamente decorada com bandeiras da vitória, cartazes, posters, anúncios eletrônicos e letreiros, em lugares públicos – como praças, metrôs e pontos de ônibus -, e privados – como lojas, restaurantes, bares, bancos etc. Todos eles trazem o logo dos 80 anos com a palavra Pobeda (Vitória) e o desenho da magnífica estátua A Mátria chama, uma das maiores estátuas do mundo (85m).

Localizada no alto de uma colina em Stalingrado, retrata uma mulher guerreira com espada erguida e uma expressão facial que mescla o horror sentido e a bravura demonstrada pelo povo soviético em uma guerra que ceifou 27 milhões de vidas no país. Um em cada 7 soviéticos morreu na guerra. Praticamente toda família perdeu alguém.

Por isso, o Dia da Vitória é uma data que mobiliza todo o país e serve como elemento de unidade diante de mais uma guerra em defesa de sua soberania. Nesse dia, por todo o país, marcham os “Regimentos Imortais”: milhões de pessoas saem as ruas com fotos de seus ancestrais perdidos na guerra e não deixam morrer a memória daqueles que deram a vida para que o país, e a humanidade, não sucumbissem em face da ameaça nazista.

Nos últimos anos em Moscou, por questão de segurança – afinal, o país está em guerra – o Regimento não saiu às ruas. Este ano, dias antes da celebração, drones ucranianos atacaram a cidade por duas noites seguidas, levando ao fechamento de aeroportos, dificultando a chegada de delegações estrangeiras, e deixando as forças de segurança na cidade – havia milhares de soldados e policiais nas ruas – em estado permanente de alerta. A gente sentia a tensão por toda parte.

As duas batalhas contemporâneas contra o Ocidente Coletivo

Oitenta anos após a vitória na Grande Guerra Patriótica a Rússia se vê envolvida em ao menos duas frentes de batalha que estão dialeticamente interligadas. Uma delas, a batalha pela memória, é permanente, pois o Ocidente Coletivo vem tentando reescrever, há décadas, a história da maior guerra que a humanidade já enfrentou.

Infelizmente, em alguns casos, as distorções e o apagamento da memória têm tido relativo sucesso, como já veremos. A outra frente é a batalha militar travada em território ucraniano, contra a população russa no Donbass e a tentativa da OTAN de avançar ainda mais em direção às fronteiras russas. A ideia é instalar ogivas nucleares estadunidenses a cerca de 500km de Moscou, como previa o plano de Zbiginiew Brzezinski – um dos cérebros da política externa da Casa Branca por décadas – em seu livro O grande tabuleiro de xadrez.

Aliás, neste livro de 1997, Brzezinsky sustenta que, para enfraquecer a Rússia, era crucial mantê-la separada da Ucrânia, política e economicamente. 28 anos depois, o objetivo se realizou. Ele profetizava que o processo de incorporação da Ucrânia à OTAN deveria se iniciar entre 2005 e 2015.

George W. Bush fez de tudo para incluir Kiev na OTAN pela primeira vez na Cúpula de Bucareste, em 2008, mas foi impedido por Angela Merkel e Jacques Chirac, quando os líderes das principais nações da UE ainda possuíam algum senso de realpolitik. Já em 2014, com o Golpe da Maidan e a derrubada do presidente Viktor Ianukovytch, inicia-se a ofensiva do Ocidente, liderado pela Casa Branca, para apartar a Rússia da Ucrânia, trazendo Kiev para a OTAN.

Foi o desenrolar deste processo que desencadeou a atual guerra. A esta altura, já está claro que a Rússia derrotou a OTAN – uma vitória cuja dimensão ainda está por ser entendida – e a Ucrânia não se tornará membro da OTAN tão cedo. Mas a previsão de Brzenzinsky estava correta e, ao menos metade dos seus objetivos, foram cumpridos.

Após mais de três anos, a guerra causou centenas de milhares de mortos em ambos os lados (incomparavelmente mais na Ucrânia), devastou a economia e o tecido social ucranianos e rompeu – provavelmente por muito tempo – laços familiares e de amizade entre povos há pouco considerados irmãos. Há muitas milhares de famílias compostas por parentes em ambos os países.

Recentemente, uma jovem russa de 25 anos me contou uma triste história. Ela é russa, seus pais são russos, todos moscovitas, mas seus quatro avós eram ucranianos que migraram para a capital há muitas décadas. Sua melhor amiga era ucraniana, filha de pais ucranianos, mas seus quatro avós eram russos, que migraram para Kiev há muitas décadas. Desde o começo da guerra, a tensão entre ambas crescia. Até o dia em que sua amiga aderiu ao Batalhão Azov – parte das forças armadas ucranianas – de ideologia neonazista. “Aí”, ela me contou com a face desolada, “ficou impossível conversar e nós rompemos relações. Talvez para sempre”.

Em uma placa dourada na estação de metrô Kievskaya (ou seja, a “estação de Kiev”), em Moscou – entre mosaicos sobre o cotidiano de trabalhadores e camponeses da Ucrânia e logo abaixo de um mosaico de Lenin – celebra-se “a inquebrantável irmandade entre os povos russos e ucranianos”. O maior confronto militar em solo europeu desde a II Guerra não só quebrou essa irmandade, mas se tornou um novo elemento impulsionador, na batalha pela memória, tanto da tentativa de apagamento do protagonismo soviético na derrota da Alemanha hitlerista, bem como do reascenso da ideologia nazista em inúmeras países ocidentais (e até mesmo do Sul Global).

Pós-verdades: o apagamento da vitória soviética e o ressurgimento nazista

Logo após o término da Segunda Guerra Mundial e o início da Guerra Fria, a maior máquina ocidental de produção de narrativas, Hollywood, começou a reescrever a história da guerra, recriando fantasiosamente um suposto protagonismo estadunidense em centenas de filmes.

Já em 1946, o filme Os melhores anos das nossas vidas, que retrata as dificuldades dos veteranos de volta para casa, arrebatou sete estatuetas do Oscar. Em 1970, Patton, biografia do General George S. Patton, que foca em suas campanhas no Norte da África e na Europa, repetiu a façanha e levou mais sete estatuetas.

Um dos filmes mais célebres destes talvez tenha sido O resgate do soldado Ryan (1998), de Steven Spielberg, que conta a história do “Dia D”, o desembarque das tropas aliadas na Normandia. Ele foi visto, somente nos cinemas, por mais de 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Além dos filmes, programas de TVs, jornais, revistas, livros e inúmeras outras produções culturais, também as escolas, universidades e outras instituições estatais, ao longo de décadas, foram capazes de estabelecer uma “pós-verdade” sobre a história da guerra e a vitória sobre o regime nazista.

Pesquisa famosa feita pelo Instituto Francês de Opinião Pública (IFOP), em 1945, detectou que 57% dos franceses creditavam à URSS a vitória sobre os nazistas, e somente 12% aos EUA. No entanto, em uma pesquisa feita em 2025 pelo instituto de pesquisa britânico YouGov, apenas 22% dos franceses acreditavam que os soviéticos foram os protagonistas da guerra, enquanto 44% dos franceses passaram a acreditar na “pós-verdade” do protagonismo dos EUA. Esta mesma pesquisa detectou que na Alemanha, os EUA ganham de 34% a 31% da URSS (apesar de que são números mais favoráveis à URSS do que 9 anos antes, que eram de 37% a 27% em favor dos EUA); enquanto nos EUA, 59% atribuem a vitória ao seu país, e somente 12% à URSS (contra 47% a 12% em 2015).

Se a história da resistência e da vitória soviéticas vem sendo apagada no Ocidente, algo ainda pior vem acontecendo nos últimos anos: o ressurgimento da ideologia nazista. No começo desta década, o site de notícias Forward, cujas origens remontam à comunidade judia de Nova Iorque em 1897, fez um mapeamento de ruas, monumentos, placas etc., batizados em homenagem a notórios nazistas. O resultado mostrou quase 1500 itens em 25 países.

Na Alemanha e Áustria, onde se esperaria que esses traços já tivessem apagados, pois houve uma política de estado para isso, foram encontrados mais de 110 itens. Nos EUA, os supostos “grande vitoriosos” da guerra, “terra da liberdade”, outros vários itens foram mapeados. No entanto, o país que, de longe, possui o maior número de homenagens a notórios nazistas é a Ucrânia, com cerca de 420 itens. Segundo a pesquisa, grande parte dessas nomeações aconteceram depois do Golpe da Maidan, em 2014. “Em alguns períodos”, dizem os autores, “ao ritmo de um por semana”.

O campeão de homenagens é Stepan Bandeira, líder de uma das facções da Organização de Ucranianos Nacionalistas, que colaborou com os nazistas. Bandera se tornou o principal símbolo do nacionalismo neonazista ucraniano, que inspira inúmeros líderes do regime de Volodimir Zelensky. Ou seja, quando a Rússia afirma que um dos objetivos de sua Operação Militar Especial é desnazificar a Ucrânia, não se trata de mera retórica, nem propaganda de guerra, mas triste realidade.

Não diz respeito somente ao governo de Zelensky, nem se trata meramente de derrotar o Batalhão Azov, ou outros similares, mas lutar contra cultura política que, infelizmente, parece ter se enraizado na Ucrânia, sobretudo desde 2014. Sob liderança dos EUA, a OTAN injetou centenas de bilhões de dólares em armas e assistência militar direta a um regime cujas inúmeras lideranças não escondem sua simpatia pela ideologia neonazista.

Por um lado, se os fins justificam os meios e o objetivo estratégico – como dito por algumas lideranças do Ocidente – era “enfraquecer a Rússia”, não há problema em usar neonazistas para atingi-lo. Contudo, apesar dos também incontáveis filmes hollywoodianos que denunciaram os horrores do regime nazista, a verdade é que o Ocidente carrega uma relação obscura com o nazismo no pós-guerra.

Há nazistas maus e há nazistas úteis

Em uma visita de Volodimir Zelensky ao parlamento canadense, o ex-oficial da SS Galizien Yaroslav Hunka, foi ovacionado de pé e celebrado como “um herói ucraniano” que teria lutado contra a Rússia pela independência de seu país. Ora, tratava-se de alguém que lutou ao lado dos nazistas. O ocorrido se tornou escândalo que levou o primeiro-ministro Justin Trudeau a pedir desculpas públicas e o presidente do Parlamento Anthony Rota – responsável pelo anúncio – a renunciar.

Contudo, esse incidente deveria nos causar menos espanto se lembramos do destino que vários importantes quadros nazistas tiveram no Ocidente após 1945. Inúmeros ex-oficiais de alto escalão do regime hitlerista foram absorvidos pelo exército alemão (Bundeswehr) e a OTAN, como Adolf Heusinger, ex-chefe de operações do comando militar de Hitler, que se tornou presidente do Comitê Militar da OTAN (1961-64), Hans Speidel, ex-chefe de staff do Marechal de Campo Erwin Rommel, posteriormente Comandante Supremo das Forças de Terra Aliadas da Europa Central (1957-63).

Podemos também citar Johannes Steinhoff, Johann von Kielmansegg, Ernst Ferber, Karl Schnell, Franz Joseph Schulze, Friedrich Guggenberger e Wolfgang Altenburg, todos eles com altíssimos postos de comando na OTAN, dos anos 60 aos 80. Mas a história mais impressionante é a de Ferdinand von Senger und Etterlin, oficial da Wehrmacht que participou da invasão da URSS na Operação Barbarossa e lutou na Batalha de Stalingrado, tendo sido ferido e retirado do campo de batalha. Senger und Etellin ainda lutou contra a URSS na Romênia, depois retornou a Berlin, até ser capturado pelos EUA. Entre 1979 e 1983, ele foi nada menos que Comandante-em-chefe das Forças Aliadas da OTAN na Europa Central.

Outro ato ocultado da memórica coletiva pelo Ocidente é a infame Operation Paperclip, na qual cerca de 1,6 mil cientistas, engenheiros e técnicos nazistas foram levados aos EUA clandestinamente para trabalhar em instituições militares, acadêmicas e industriais, onde continuariam a desenvolver e aplicar seus conhecimentos avançados em áreas como ciência de foguetes, aeronáutica, medicina e física.

O personagem mais famoso dessa história é Wernher Von Braun, líder do programa alemão de foguetes V-2 e fundamental no desenvolvimento do foguete Saturn V da NASA, que possibilitou as missões Apollo à Lua. Von Braun recebeu inúmeras homenagens na NASA e faz parte da lista de nazistas homenageados pelo site Forward. Algo semelhante, mas menos documentado, ocorreu com a pouco conhecida, mas extremamente brutal, Unidade 731 do exército imperial japonês, responsável por desenvolver armas de guerra química e biológica baseadas em experimentos com prisioneiros de guerra, na maioria chineses, mas também coreanos, mongóis e russos.

A unidade, localizada em Harbin, no norte da China, chegou a contar com mais de 3,6 mil funcionários distribuídos em mais de 150 edifícios. Antes de sua rendição, os japoneses tentaram apagar as evidências de seus crimes de guerra, mas os chineses conseguiram reconstituir, materialmente e a partir de depoimentos, muitas das atrocidades ali cometidas. No entanto, inúmeras figuras-chave, como seus ex-diretores Shiro Ishii e Masaji Kitano, obtiveram imunidade das autoridades estadunidenses – provavelmente em troca de fartos dados de pesquisa – e seguiram vidas normais no Japão do pós-guerra.

Se o protagonismo soviético vem sendo apagado pelo Ocidente, ainda mais apagado foi o sacrifício monumental feitos pelo povo chinês na Segunda Guerra Mundial. Muitos ainda sabem que quase 30 milhões de soviéticos morreram, mas são poucos os cientes de que cerca de 20 milhões de chineses perderam suas vidas em invasões e ataques japoneses, a partir de 1937.

Não fosse o espírito de luta do povo chinês, seria possível que os japoneses abrissem uma segunda frente de batalha contra os soviéticos no leste, provavelmente complicando suas chances de vitória na frente ocidental contra os nazistas. Segundo dados do Exército de Libertação Popular, 35 milhões de chineses morreram ou foram feridos.

Se a História considera que a Segunda Guerra Mundial começou em 1939 na Europa, na realidade, ela havia começado já na Ásia em 1937. Bem antes da invasão da Tchecoslováquia, chineses, e outros povos asiáticos, já sofriam na pele as consequências do expansionismo bélico e fascista japonês. A guerra também terminou depois no continente asiático, em setembro – e não maio como na Europa – de 1945.

Por isso, a presença do presidente chinês Xi Jinping na comemoração dos 80 anos da vitória sobre o nazi-fascismo, em posição de destaque ao lado do presidente Vladimir Putin, carrega uma simbologia extramamente importante no resgate do papel inestimável do povo chinês, organizados em uma Frente Unida de comunistas e nacionalistas, mas na prática liderada por outro Exército Vermelho, de Mao Zedong, Zhou Enlai e Zhu De.

Como disse o presidente Xi em carta publicada na semana do Dia da Vitória: “Durante a Guerra Mundial Antifascista, os povos chinês e russo lutaram lado a lado e se apoiaram mutuamente. A forte camaradagem entre nossas duas nações, forjada no sangue e no sacrifício, avança incessantemente, poderosa como o Rio Amarelo e o Volga.”

Essa camaradagem é hoje expressa por inúmeros interesses e ações estratégicas comuns, entre eles, como lembrou o presidente Putin, “Rússia e a China estão unidas em seus esforços consistentes para preservar a verdade histórica sobre a Grande Vitória como um valor comum para a humanidade e, juntas, impedem tentativas de falsificar a história e reabilitar o nazismo e o militarismo”.

URSS e China, com seus respectivos Exércitos Vermelhos, foram protagonistas da luta contra o nazi-fascismo nos anos 30 e 40. Oitenta anos depois, mais uma vez, Moscou e Pequim são protagonistas da luta pela construção de alternativas ao unilateralismo e às práticas coercitivas das potências ocidentais. Tentam construir alternativas ao Hiperimperialismo belicista que ameaça a humanidade com guerras eternas. As lutas do presente e as do futuro estão diretamente ligadas à batalha pela interpretação do passado, que vem sendo transfigurado na “pós verdade” pela máquina ocidental de produção de narrativas. Nesses dias, vale a pena relembrar uma das maiores verdades já ditas sobre a Segunda Guerra Mundial, atribuída ao escritor estadunidense Ernest Hemingway: “Todo ser humano que ama a liberdade deve, ao Exército Vermelho, mais do que conseguirá pagar em toda a vida”.

Talvez não seja injustiça histórica dizer que devemos aos DOIS Exércitos Vermelhos.

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