Saúde mental é coisa séria. Com essa tônica, usuários de saúde mental, seus familiares, trabalhadores e integrantes de movimentos populares vão às ruas, nesta sexta-feira (16), para se mobilizar pelo Dia da Luta Antimanicomial, comemorado no 18 de maio. A escola de samba ‘Liberdade Ainda que Tam Tam’ desfila em Belo Horizonte, a partir de 13h30, na avenida Afonso Pena, com percurso até a Praça da Estação.
Este ano, os manifestantes pretendem mostrar que esse assunto precisa ir além e encontrar outros debates importantes e atuais que interferem diretamente nos desafios enfrentados pelas pessoas com sofrimento mental.
O desfile, que defende a sustentação de uma política de saúde mental radicalizada na defesa dos direitos das pessoas em sofrimento mental e em uso prejudicial de álcool e outras drogas, se posicionará contra a anistia aos golpistas do 8 de janeiro de 2023, em Brasília.
“Denunciamos as violências sistêmicas que sustentam os golpes militares e as diversas opressões que atingem as populações marginalizadas. Como em anos anteriores, cantaremos a resistência contínua das lutas pela democracia, pela reforma psiquiátrica antimanicomial e pelo fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS)”, aponta Isabella Lima, psicóloga e conselheira do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG)
A mobilização também reafirma, segundo ela, que a anistia não é a solução, pois o julgamento e a responsabilização dos responsáveis pela articulação, financiamento e incentivo à tentativa de golpe militar são imprescindíveis para o enfrentamento das raízes estruturais da violência política e social.
“Sem democracia não há saúde, como nos ensinou Sérgio Arouca na década de 1970. Nesse sentido, convocamos a resistência contra a medicalização das infâncias e adolescências, defendemos o direito à liberdade de ser e viver, com destaque para a proteção dos povos originários e da terra, além da luta contra a mercantilização da saúde, da vida e da natureza, e nos opomos à guerra às pessoas que usam drogas”, acrescenta.
Saúde mental em BH precisa de atenção
O objetivo da manifestação é também reforçar a oposição à possível alteração na gestão dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs) na capital mineira para organizações sem fins lucrativos. A ação foi sinalizada pela Secretaria Municipal de Saúde, mas, devido à mobilização de movimentos populares, a pasta prometeu rever a medida.
“Os movimentos sociais são radicalmente contra a privatização do SUS. A gente necessita que a gestão [da prefeitura] faça isso, porque essa é a posição ética no cuidado com uma política tão delicada que é restituir as pessoas que viveram encarceradas no manicômio, presas, torturadas pelo Estado”, defende Marta Elizabete de Souza, psicóloga e integrante do Fórum Mineiro de Saúde Mental (FMSM).
Para Isabella Lima, os impactos da aprovação de uma medida como essa é a precarização da assistência às pessoas que necessitam dessa política pública e o enfraquecimento de um modelo de cuidado em saúde mental internacionalmente reconhecido. Neste sentido, segundo a psicóloga, há um risco inegável de mercantilização da saúde.
“As decisões mais relevantes sobre os SRTs (como a escolha dos territórios, das casas e a definição das equipes e dos Projetos Terapêuticos Singulares) não podem estar nas mãos de quem não compartilha o compromisso histórico com os direitos das pessoas em sofrimento mental. Isso é inaceitável e enfraquece o modelo de cuidado que vem sendo construído no Brasil desde o final da década de 1980, após mais de um século de uma política pública que se fundamentou na exclusão e na violação de direitos humanos”, lembra a conselheira do CRP-MG.
Retrocessos na política
É nesse contexto que a luta antimanicomial ganha ainda mais relevância. Lima também cita como importante a ser discutido no contexto da mobilização o projeto de lei, em discussão na Câmara Municipal de BH, que prevê a regulamentação de internações voluntárias e involuntárias de dependentes químicos na capital, focado em pessoas em situação de rua e em grau de extrema vulnerabilidade
“Há prática mais higienista do que essa? Trata-se de uma resposta reducionista para uma questão extremamente complexa, marcada por graves violações de direitos humanos, como a ausência de acesso a políticas de moradia, trabalho e renda, segurança alimentar, para dizer o mínimo”, sinaliza ela.
Esses projetos não são novos, mas, em um contexto de avanço do conservadorismo, ganham fôlego, segundo ela.
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“São propostas higienistas, racistas e aporofóbicas. Representam uma afronta direta à Lei Federal 10.216, que estabelece que a internação deve ocorrer apenas quando os recursos comunitários e de base territorial se mostrarem insuficientes e proíbe a internação em instituições com características asilares. A intenção por trás desses projetos é inequívoca: ampliar o número de internações e o financiamento público de comunidades terapêuticas, espaços amplamente denunciados por violações de direitos humanos”, fundamenta.
Por que a luta ainda é tão atual?
Entra ano, sai ano, e o Dia de Luta Antimanicomial permanece na pauta. A discussão continua relevante porque o risco de retomar práticas de privação de liberdade vistas em manicômios nos anos 70 e 80 ainda é atual.
“Havia institucionalização das pessoas com transtornos mentais graves, severos e persistentes, pessoas em uso prejudicial de álcool e outras drogas. Institucionalizar é segregar, apartar da sociedade e tirar a vida, porque a pessoa institucionalizada perde toda a sua subjetividade, porque essa lógica apaga os seus desejos, determina a hora de comer, de dormir, de ter algum nível de alguma atividadezinha mínima coletiva, etc”, conta Marta Elizabete de Souza.
Atualmente, segundo Isabella Lima, há em curso um contexto preocupante de retrocessos. No campo da saúde mental, ela explica, autores têm apontado a existência de um processo de “remanicomialização”, que se relaciona tanto com a ampliação de espaços asilares como as comunidades terapêuticas, como com a reprodução de práticas medicalizantes.
“Além das fragilidades relacionadas aos serviços especializados, a atenção básica, que deveria ser a principal porta de entrada para o cuidado em saúde mental, também se apresenta insuficiente. A descontinuidade do cuidado, a fragilidade dos vínculos e a alta rotatividade dos profissionais, decorrente da baixa remuneração e das condições precárias de trabalho, impactam diretamente a qualidade da atenção ofertada”, detalha.
Importância da arte, da saúde pública e do cuidado em liberdade
Apesar disso, quando as políticas sociais e a saúde pública funcionam como deveriam funcionar, os exemplos práticos são positivos. Marcos Evando, usuário de saúde mental e integrante do ‘Trem Tam Tam’, afirma que o cuidado com sua saúde mental, aliado à sua presença na luta antimanicomial, trouxe transformações significativas.
“O coletivo ‘Trem Tan Tan’ foi um dos primeiros coletivos de dentro da saúde mental e veio desconstruir a ideia do ‘louco incapaz’ e ‘antissocial’. Nossa sociedade é cruel e preconceituosa. As atividades rítmicas nascidas nas oficinas ofertadas pelo ‘Trem Tan Tan’, para dois centros de convivência, em Venda Nova e no Providência, foram uma revolução na reforma psiquiátrica de Minas Gerais”, conta.
Tímido, sem muito tato para lidar com a fotografia, Marcos se encontrou ao “brincar com as palavras na escola”. “Chegaram a me chamar de poeta naquela época em 1996”, recorda.
Quando veio o adoecimento psíquico, o problema maior foi encarar o julgamento da sociedade.
“Precisei de cuidados. Esse cuidado foi como um processo de dúvidas, não aceitação e de descobertas. Foi quando eu me conheci que percebi que, se eu não aceitasse o tratamento, tudo ia continuar me machucando”, revela.
Esse processo demandou a insistência dos profissionais de saúde do Centro de Referência em Saúde Mental (Cersam) e o aprendizado para ressocialização.
“Ao chegar no centro de convivência Barreiro, me senti acolhido e me permiti entrar naquele modelo de se fazer arte. A primeira oficina que eu quis participar foi a de escrita, depois ingressei nas artes cênicas e, por último, na música. Foram processos criativos tão importantes e significativos pra mim”, diz.
“Sempre me ocupo com o que gosto. Sou militante antimanicomial e conselheiro municipal de saúde, participo de dois coletivos musicais e estou sempre tentando me capacitar, sem perder a visão do que fui e do que estou me tornando”, conta, ciente de que esse percurso só foi possível porque foi acolhido em liberdade.
“Ah, se dessem voz aos loucos dessa nação”, finaliza.
Serviço:
Desfile do Dia da Luta Antimanicomial
Data: 16 de maio de 2025
Local de concentração: avenida Bernardo Monteiro (próximo ao quarteirão do Colégio Arnaldo)
Horário: 13h30
Trajeto do cortejo: avenida Bernardo Monteiro, avenida Afonso Pena, rua
Espírito Santo, rua Tupinambás, Praça da Estação (dispersão)