Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, foi uma das cidades mais atingidas pela enchente histórica de 2024 no Rio Grande do Sul. Mais de 180 mil moradores, de uma população de 347 mil habitantes, tiveram que deixar suas casas. Um ano depois, muitos atingidos convivem com o medo de novas chuvas enquanto aguardam o avanço das obras nos diques e casas de bombas.
No final do mês de abril, associações comunitárias de bairros atingidos e cozinhas solidárias organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Levante Popular da Juventude iniciaram uma série de protestos para cobrar ações concretas do poder público.

A primeira manifestação foi realizada no dia 26 de abril em frente à Casa de Bombas 6, no bairro Mathias Velho. Ali foi um dos pontos onde o dique rompeu durante a enchente. A vista das casas nos bairros Mathias Velho, Harmonia e Moto Alto se resumiu a telhados e água.
Carmen Correa dos Reis, que preside a Associação de Moradores Getúlio Vargas, mora na Mathias Velho há 40 anos. Ela conta que perdeu tudo e que sua casa ficou submersa por 30 dias. “Foi um sofrimento terrível.”
Um ano depois da tragédia, Reis resume a indignação da população. “Foi o primeiro ato da enchente, reivindicando os direitos, que são os diques, a saúde, os esgotos, enfim. Tudo aquilo que nós perdemos aí… o aluguel social, que tem muita gente saindo dos alugueis sociais, já não sabem nem para onde vão, não tem resposta de nada.”
Confira a reportagem em vídeo:
Também moradora da região, Marisa Rodrigues, secretária-geral da Associação de Mulheres do Multiplicar, lembra que, “no fatídico dia 3”, sua casa foi tomada até o telhado pela enchente. Ela reforça a preocupação com a falta de informações.
“É um momento que a gente tem de recomeço, de muita garra, mas também hoje a gente vem aqui trazer as nossas angústias. Nós queremos transparência, a gente quer que nos digam o que está acontecendo, o porque que eles não dão informações concretas e o porque que essa obra (do dique) não sai”, diz Rodrigues.
Moradores se organizaram com o MAB
O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) está atuando ao lado dos moradores dos bairros atingidos de Canoas. No dia 24 de abril, uma comitiva tentou dialogar com o prefeito Airton Souza, do PL, mas foi recebida pelo secretário de Relações Institucionais, Rossano Gonçalves. Entre as reivindicações apresentadas estão desentupimento dos esgotos, rapidez na reforma e ampliação do sistema de proteção e criação de um programa de reforma das moradias.
Sara da Rosa vive com seus filhos e pais idosos no bairro Harmonia. Sua casa também ficou submersa até o teto. Ela conheceu o MAB após a enchente e entrou para o movimento. “Foi o MAB que esteve sempre ao nosso lado”, afirma.

Ela esteve na comitiva que participou da reunião com o secretário e conta que a população está desesperada com a demora nas obras do dique. Segundo ela, as obras ficaram paradas por meses e só agora após pressão é que se vê movimentações.
“A alegação que ele (o secretário) deu é que não tem caminhão, só tem um ou dois, parece, trabalhando lá, e que eles têm que arrumar as (casas de) bombas. Ainda tem bomba que tem que ser consertada. Aí tu me diz, se as bombas têm que ser consertadas, imagina quando o dique vai ficar pronto”, alerta.
Esgotos entupidos
Da Rosa relata grande dificuldade para a reconstrução. Tudo o que tem em sua casa hoje é fruto de doação. O medo surge cada vez que tem previsão de temporal. “Eu não sei se eu aguento passar por tudo de novo. Porque não era ele (o prefeito) que estava aqui quando eu voltei pra casa. E vi minha casa toda destruída. E vi tudo o que eu trabalhei anos”, desabafa.
Outro problema são os alagamentos que se tornaram frequentes no bairro em dias de chuva. “Eu tenho dois meninos e eles estudam, se é um momento que eles têm que ir pra aula, eu não consigo levar eles pra escola. Acabo tendo que ligar pra escola e avisar, mando até foto, não tem como eu tirar eles de casa porque o pátio tá alagado.”
Segundo a moradora, tem ruas no seu bairro com os esgotos entupidos. “Tranca e volta pra dentro da casa da pessoa. Isso já era pra eles terem finalizado. Passou-se um ano”, critica.
Moradores pedem reforma das casas
Para da Rosa, os moradores atingidos estão abandonados. Ela conta que nem sequer recebeu a visita de técnicos para avaliar os danos da sua casa. E que mesmo recebendo laudo apontando risco não quer abandonar o lugar onde vive. Os moradores, junto com o MAB, lutam por um programa de reformas das moradias.
“Até porque os gastos seriam bem inferiores do que eles construírem uma casa pra nós. Seria o conserto de uma coisa, de um telhado. Outras casas ficaram mais danificadas, mas não é construir outra casa. E automaticamente, o pessoal mora aqui há 40 anos, por que eles têm que sair da casa deles? Não é só uma questão de casa, mas é uma questão assim, tu tem ali uma história”, avalia.
O que diz a prefeitura
A prefeitura de Canoas informa em seu site que as obras no sistema de proteção da cidade estão sendo realizadas de forma emergencial com recursos próprios nos pontos em que os diques romperam. Para obras em todo o sistema e elevação da cota, aguarda os recursos federais, que só serão liberados quando o governo estadual enviar os projetos.
Informa ainda que as redes de esgoto estão recebendo hidrojateamento para desobstrução. A reportagem solicitou posição sobre a cobrança dos moradores, mas não teve retorno até o fechamento desta reportagem.
Com relação às moradias, a Secretaria de Habitação disse que foram solicitadas mais 18.633 vistorias. Desse total, mais de 5,5 mil casas foram consideradas inabitáveis e estão pendentes 1,2 mil vistorias. E que um programa em parceria com o governo federal prevê a reconstrução de até 210 casas através do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
A secretaria informa que há 216 pessoas desabrigadas, acolhidas no Centro Humanitário de Acolhimento Recomeço, que será desabilitado no final de maio, quando parte dessas pessoas ganhará casas temporárias. E que o programa Aluguel Social atualmente contempla mais de 1249 famílias.
O órgão disse ainda que foram entregues 112 moradias pela Compra Assistida e estão em construção 400 casas definitivas. Outras 3 mil construções foram autorizadas pelo Ministério das Cidades e estão com contratos assinados ou em tramitação. E que está em tratativa com o governo federal para a construção de mais 3 mil unidades.
