O camponês haitiano Jean Claude Philippe, o Janklod, foi morto em 30 de abril durante um massacre na zona rural de Ti Rivyè, no Haiti.
“No dia que nós tava indo embora do Haiti, o Janklod encheu os olhos de água, me deu a mão e disse: ‘Não vai esquecer de mim, viu? Porque essa será a última vez que vou conseguir te ver’. Aquilo mexeu comigo… Tá louco. Que dor no coração saber que ele tava certo”.
A voz de Deangelo Assis embarga ao final do relato. O áudio do camponês catarinense é interrompido bruscamente. Só encontra forças para finalizar por escrito. “Eu amava ele. Meu maior professor”.
Era fim da tarde de sexta-feira, 2 de maio, e o grupo formado por ex-integrantes da Brigada Dessalines de solidariedade internacionalista da Via Campesina no Haiti tentava lidar com uma mensagem enviada havia pouco, na língua local da ilha caribenha: “Bandidos mataram Janklod e queimaram muitos em Dofouno. As casas do meu pai e da minha tia foram incendiadas. É assustador”.
Jean Claude Philippe, o nosso Janklod, estava morto. Completaria 61 anos no próximo 23 de junho. Pai de cinco filhos, militante da organização camponesa Tèt Kole Ti Peyizan Ayisyen, foi responsável pelo centro de formação que acolheu brigadistas internacionalistas oriundos das mais variadas regiões do Brasil e América do Sul durante os anos 2009 e 2015.
“Ele cuidava de nós como um pai cuida de um filho”, desabafou Oelinton Souza, de Rondônia. “Foi imprescindível para a existência da Brigada”, completou José Luís Patrola, do Rio Grande do Sul. “Talvez tenha até salvado nossas vidas algumas vezes”.
Aos poucos, novas mensagens chegaram desde Dofouno, bairro da cidade de Ti Rivyè, no departamento de Latibonit, região central do Haiti, que abriga grande parte dos arrozais do país.
“Grande catástrofe. Perdemos muitos amigos. Bandidos mataram muitos de nós e queimaram todas as casas em Ti Rivyè. Destruíram tudo o que encontraram no caminho”.
Vídeos começaram a circular. Em um deles, um enorme cordão humano atravessava, entre nado e caminhada, o rio que dá nome ao local (em kreyòl, Ti Rivyè significa Pequeno Rio), numa tentativa desesperada de fuga para a cidade vizinha, Verèt.
Outro, aterrador, registrava casas camponesas em chamas. Ao menos onze corpos jaziam no quintal compartilhado envolto por plantações. Queimados, mutilados, com sangue ainda escorrendo pelo chão de terra batida. O canto de luto entoado pelo autor da filmagem foi interrompido por uma cravejada de tiros e gritos que ecoam próximos.
No último vídeo, descobrimos como se deu a morte de Janklod. Enquanto a população de Dofouno saía às pressas de suas casas ao saber que membros da gangue Gran Gif se aproximavam após arrasar vilarejos vizinhos, ele decidiu ficar. Seu irmão mais velho, portador de deficiência que o impedia de andar, não conseguiria fugir. Ajudou vizinhos e amigos como pode, antes de se recolher na casa do irmão. Naquele mesmo dia, 30 de abril, os dois foram assassinados durante o massacre que ceifou, ao menos, outras vinte vidas.
Imagens mostravam seus corpos com sinais de tiro e parcialmente carbonizados, já em estado de decomposição. Foram necessários alguns dias para que uma breve trégua permitisse que moradores recolhessem e sepultassem seus mortos.
Em outra foto, um caixão marrom, austero, é equilibrado na cabeça por dois homens em uma das ruas de bairro de Dofouno. É o último registro que teremos de Janklod, enterrado minutos depois. O medo de novos ataques não permitiu nenhum velório ou homenagem.
“Estávamos apenas eu e Janklod no Centro, em Dofouno, e um companheiro que ia viajar havia esquecido o passaporte”, relembra a brigadista Livia Morena, de Minas Gerais.
“Saímos às pressas, de moto. Ele quis que eu fosse pilotando a moto, pra poder pegar experiência. Fomos os dois um pouco tensos, mas ele sempre me encorajando. Nas estradas do Haiti têm aquelas carretas apelidadas de Diyab (diabo, na língua local). Já pelo meio da viagem, eu mais confiante, avisto uma lá na frente. Janklod começa a falar e eu, de capacete, não escutei. Quando a Diyab passou, estávamos em cima de uma ponte, quase nos desequilibramos e caímos no rio. ‘Pare agora’, Janklod gritou comigo.”
“‘Com o Diabo não se brinca, menina. Quando você vê um, tem que parar pra deixar passar. Se a gente morrer aqui, como é que vai ficar seu povo lá no Brasil?’ Nervosa, não queria mais pilotar. Ele insistiu e seguiu na minha garupa até o fim da viagem. Me ensinou sobre cuidado, responsabilidade e confiança num só episódio.”
Janklod, nosso anfitrião, professor e protetor. Não conseguimos fazer por ele o mesmo que fez por nós.
Sua morte, contudo, não é um caso isolado. Reflete a caótica situação em que se encontra o Haiti, a ponto da própria Secretária Geral das Nações Unidas no país alertar para o risco iminente “de não retorno”.
Durante reunião do Conselho de Segurança da ONU poucos dias antes do massacre em Dofouno, María Isabel Salvador informou que, apenas entre os meses de fevereiro e março deste ano, 1.086 pessoas foram mortas, 383 ficaram feridas, e cerca de 60 mil foram deslocadas à força – sendo que, desde dezembro passado, já são mais de 1 milhão de desalojados. A insegurança fechou 39 unidades de saúde e mais de 900 escolas, somente em Porto Príncipe. “À medida que a violência de gangues continua a se espalhar para novas áreas do país, os haitianos vivenciam níveis crescentes de vulnerabilidade e crescente ceticismo quanto à capacidade do Estado de responder às suas necessidades”, denunciou.
Gran Grif, o grupo armado responsável pelo massacre em Dofouno, é a maior gangue do estado de Latiboniti. Desde 2022, foi responsável por 80% dos relatos de mortes de civis na região, além de ataques à Polícia Nacional Haitiana (PNH) e à Missão Nacional de Apoio à Segurança no Haiti (MSS), aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU em outubro de 2023. Um oficial queniano da MSS foi morto por membros da gangue em fevereiro de 2025, segundo informações da embaixada estadunidense no país.
A ela, se somam G9, G-Pep, 400 Mawozo, 5 seconds, Ti Mak, Baz Galil, Vilaj de Dye, Vitelhomme, Viv Ansanm – alguns dos muitos grupos armados responsáveis pela onda de sequestros, estupros, roubos e mortes que culminou no assassinato do último presidente eleito no Haiti, Jovenel Moïse, em julho de 2021, mergulhando o país em uma espiral de violência e instabilidade política que dura até os dias de hoje.
Vale destacar que as Nações Unidas identificaram mais de 500 mil armas em circulação na ilha, mesmo não existindo uma única fábrica de armamentos em todo seu território. Mais de mil e setecentos quilômetros de costa são monitorados por menos de duzentos oficiais e um único navio-patrulha em operação. A agência antidrogas estadunidense estima que um quinto de toda cocaína colombiana consumida nos EUA passa pelo Haiti.
“A situação no Haiti é gravíssima, só existe segurança para os líderes políticos e membros da burguesia nacional e comunidade internacional que ainda estão no país”, denuncia Wosnel Jean Baptiste, membro da executiva nacional do Tèt Kole Ti Peyizan Ayisyen. “Quem sofre são os camponeses. Eles plantam e as gangues se apropriam de sua colheita. Elas roubam seu gado, porcos, cabritos, galinhas. O pouco que os camponeses produzem e criam está sendo tomado à força pelos bandidos.”
Wosnel destaca que as principais rodovias que cortam o país estão sob o domínio das gangues e que o bloqueio propalado pelo governo dos Estados Unidos não funciona. Os grupos armados seguem sendo financiados e munidos por comparsas que vivem em território estadunidense, jamaicano e dominicano.
Para ele, a solução para a crise passa por um articulação da sociedade haitiana e da comunidade internacional que seja capaz de, por um lado, pressionar pelo fim dos canais de escoamento e financiamento estrangeiro das gangues haitianas, e, por outro, centrar esforços em combater a fome que assola o país. Na opinião de Wosnel, é mais que urgente dar ao povo haitiano a segurança e estabilidade para resolver, de forma soberana, seus problemas. “Sem isso, o país acabará de vez”, sentencia.
E um dos caminhos para a retomada dessa soberania passa pela reparação da dívida da independência, imposta pela França em 1825, que exigiu o pagamento de 150 milhões de francos dos ex-colonizados. Em 2022, o jornal estadunidense The New York Times estimou que esses pagamentos “custaram ao desenvolvimento econômico do Haiti entre US$ 21 bilhões e US$ 115 bilhões em perdas ao longo de dois séculos, ou entre uma e oito vezes o Produto Interno Bruto (PIB) do país em 2020”.
Além disso, é preciso que o Brasil também se responsabilize pelos danos causados após a fatídica passagem da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH), liderada pelo exército brasileiro entre os anos de 2004 a 2017. Com amplo histórico de violência, corrupção, disseminação de doenças e violação de direitos humanos, os militares e generais enviados pelo governo brasileiro conseguiram a proeza de tornar o país ainda mais frágil em sua segurança pública e instituições do que antes de sua chegada.
O apoio brasileiro, justamente por todo esse histórico perverso, deve evitar quaisquer tipo de envio contingentes militares, focando, ao invés disso, em ações voltadas ao fortalecimento da Polícia Nacional Haitiana (PNH) através de uma cooperação civil não-militar que promova treinamentos especializados, melhoria de infraestrutura e coleta e análise de dados sobre segurança pública. Como alternativa ao envolvimento do exército ou quadros policiais, essa cooperação poderia ser liderada por organizações da sociedade civil especialistas no tema, como a Rede de Observatórios da Segurança ou o Instituto Fogo Cruzado, por exemplo.
A superação da crise por que passa o território que foi berço da luta anticolonialista e antirracista das Américas, exige, cada vez mais, soberania e solidariedade populares. Janklod, com sua vida dedicada ao trabalho árduo e cuidado com o próximo, nos dá o exemplo.
“Quando fui ao nosso antigo centro de formação em Ti Rivyè, tentei avisar Janklod, mas já não tinha seu contato”, contou o brigadista gaúcho Paulo Almeida, relembrando uma das últimas passagens por Dofouno.
“Ao chegar, andei pelo pátio, cozinha, alojamentos. Olhei pela janela do quarto e lá estavam a bandeira do MST e um quadro do Sebastião Salgado, uma memória preservada cuidadosamente. Foi uma sensação estranha. Alegria em estar de volta onde havia vivido o período mais intenso de toda minha vida, e tristeza em vê-lo abandonado. Quando Janklod foi avisado que eu estava lá, veio correndo. Ao me ver, já com os olhos cheios d’água, me abraçou. Choramos abraçados por um tempo. Aquela era uma verdadeira amizade, dessas que jamais esqueceremos”.
Esse foi o derradeiro abraço de Paulo em Janklod. E o de todos nós. Jamais esqueceremos.