O drama de pensar em termos de urgência

ensaio de Severino Ngoenha & José Castiano
Vivemos em Moçambique um tempo singular: um tempo em que o -suposto- silêncio dos filósofos, dos académicos, dos intelectuais (Jessemusse Cacinda), se tornou ruidoso. Pela primeira vez desde a independência, o povo -este sujeito coletivo tantas vezes abstrato- interroga diretamente os seus pensadores: “onde estais?” Não se trata de uma cobrança qualquer. Trata-se de um apelo filosófico profundo. E só por isso, este debate é já um acontecimento.
A filosofia nasceu na praça. A praça pública foi o seu primeiro lar e continua a ser, no mais íntimo, o seu verdadeiro habitat. Hoje, quando em Moçambique se exige a palavra dos filósofos, quando se acusa os intelectuais de silêncio, de cobardia ou de ausência, talvez estejamos a reencontrar, pela primeira vez em décadas, o rastro da praça na nossa vida intelectual. Este simples fato – o povo interpelar os filósofos – é, em si mesmo, um sinal de vitalidade democrática. Mas é também um sintoma de um mal entendido: afinal, quem é o filósofo? O que é um intelectual? E o que pode, verdadeiramente, a filosofia?
Desde o caso Dreyfus em França, a figura do intelectual passou a ser associada ao engajamento moral e político. Mas nem todo académico é intelectual, nem todo intelectual é filósofo. Os médicos, engenheiros, biólogos e arqueólogos são académicos respeitáveis, mas não são chamados, em geral, a ocupar a ágora da opinião pública. Já os filósofos, sociólogos, juristas e pensadores políticos pertencem a um outro regime de visibilidade e responsabilidade: o da palavra pública. O filósofo, desde Sócrates, é aquele que toma a palavra em público, como recordava Kant ao definir o Iluminismo. A sua missão não é apenas interpretar, mas tornar visível o que é invisível, pensar o tempo em que vive.
Esta função de dizer em nome do pensar, de interpretar o tempo é o que constitui o próprio ato filosófico. Hegel dirá que a filosofia é o seu tempo apreendido por conceitos. Marx acrescentará que o objetivo não é só interpretar o mundo, mas transformá-lo. Todavia, interpretar o mundo é uma forma de ação. Como defendeu Maurice Blondel na sua obra, Pensée et action, há uma continuidade entre pensar e agir. Toda ação começa por uma ideia, por uma palavra, por um gesto simbólico. O próprio ato de compreender, nomear, criticar, esclarecer ou desconstruir uma realidade é uma forma de intervenção sobre ela.
A ação do pensamento filosófico não se mede apenas pelo seu impacto imediato, mas pela sua capacidade de deslocar o sentido, desorganizar o estabelecido, abrir possibilidades. O pensamento filosófico, ao interrogar os fundamentos da vida comum, prepara as condições de possibilidade da mudança. É por isso que, ao interpretar o seu tempo -como defende Hegel- o filósofo já participa da sua configuração, não como engenheiro social, mas como médium de sentidos. Marx pretendeu que “os filósofos apenas interpretaram o mundo, mas doravante trata-se de transformá-lo”. Contudo, a sua própria vida foi uma demonstração de que o pensamento é já ação.
Quando ele escreveu O Capital, não pegou em armas, mas armou milhões de pessoas, pelo mundo fora, com as suas ideias. Exigir ao filósofo que abandone o pensamento para “agir” -no sentido vulgar do termo- é esquecer que pensar é já transformar o real; que escrever, publicar, interrogar é já uma intervenção. A filosofia não é inércia, é outro modo de luta.
O que e quem define o papel do filósofo? Não é a comunidade médica que define o cirurgião, nem a engenharia que define o engenheiro? E, no entanto, o filósofo escapa a essa designação funcional, ele decide-se. Decide se é poeta, se é político, se é esteta, se é jurista. A sua função não é atribuída – é conquistada, pensada, interpelada, encarnada.
Mas isso não significa que a comunidade não participe dessa definição. O filósofo é filho do seu tempo, da sua terra, da sua língua. Ele é moldado pelas feridas e pelos dramas da (sua) sociedade, que permeiam todo o filosofar: os mesmos dramas que fizeram Diógenes mandar Alexandre sair da frente para poder ver o sol, os dramas de Platão, cuja república continua uma utopia. Paulin J. Hountondji exprimiu estes dramas com angústia:“Que peut la philosophie? À quoi sert-elle, en Afrique, aujourd’hui?”
Essa pergunta ecoa como grito trágico no deserto do nosso tempo. O que pode fazer a filosofia quando o país arde, quando o povo exige ação imediata, e o filósofo oferece pensamento, silêncio, mediação? Esta tensão, esta impotência sentida, é o verdadeiro drama do filósofo moçambicano e africano hoje: não a de não fazer nada, mas a de fazer algo que poucos reconhecem como ação.
Aqueles que hoje exigem dos filósofos uma palavra não erram: participam da definição do que é ser filósofo. E isso é filosoficamente relevante. Mas erram ao exigir que o filósofo seja o que não é: um militante, um orador, um ativista. O filósofo pode sê-lo -se assim escolher, mas só se for fiel à sua verdade. É essa liberdade que importa preservar. Como dizia Voltaire: “Posso não concordar com o que dizes, mas defenderei até à morte o teu direito de dizê-lo.” Do mesmo modo, os filósofos devem defender o direito dos outros à sua urgência, mas os outros devem conceder o direito dos filósofos ao seu tempo.
Dubois, Langston Hugues, Césaire, Senghor -os grandes nomes da Black Renaissance e da negritude – traziam nas costas o seu povo, e diziam-no sem vergonha. Hoje, perguntar se ainda temos essa obrigação é legítimo. Mas também é legítimo perguntar: o que significa carregar um povo nas costas? É repetir-lhe os slogans? Ou é dar-lhe o que ele ainda não sabe que precisa? Ser o arauto da sua consciência por vir?
Porque o risco é este, querer que o filósofo diga aquilo que se quer ouvir, que ele se torne intérprete autorizado do ressentimento coletivo, que se cale quando pensa diferente.
Não é legítimo acusar o filósofo de inação apenas porque não marcha ao som do tambor. Ser revolucionário não é necessariamente pegar em armas ou militar diretamente. A revolução, em sentido filosófico, é a recusa de aceitar o mundo tal como está. A revolução é, neste sentido, um gesto intelectual profundo: é instaurar uma nova sensibilidade, como diria Rancière, é fazer ver o invisível, tornar intolerável o que parecia normal. O filósofo pode ser revolucionário ao fazer da sua linguagem uma ruptura, ao pensar de forma não conformada. A verdadeira revolução é muitas vezes silenciosa, até que ressoe como um trovão no espírito da época.
Há revoluções que nascem do silêncio da biblioteca. Há guerras que começam num parágrafo. Os que exigem dos filósofos que se tornem megafones da indignação, muitas vezes esquecem que há outros modos de agir, modos mais lentos, menos visíveis, mas mais profundos. E, sobretudo, que o filósofo não se define por decreto público, nem por edital estatal.
Há uma violência simbólica -muitas vezes mais feroz que a física- que exige ao filósofo que abdique da sua vocação crítica, da sua inquietação, da sua solidão. Que se conforme. Que se junte à multidão. Mas a filosofia não é populismo. Não é grito. É escuta. É espera. É, muitas vezes, impotência. Como La Boétie, que falava da servidão voluntária, ou como os filósofos alemães do pós-guerra, que hesitavam entre a culpa e o silêncio. O filósofo vive este drama. O drama de Diogenes, o drama de Platão, o drama de Derrida, que dizia que a justiça é uma promessa que nunca se cumpre plenamente.

É valioso que hoje, em Moçambique, se exija ao filósofo que fale. Esta exigência, por mais injusta que seja, é já um reconhecimento. Reconhece-se que há algo na filosofia que ainda importa. E isso é motivo de esperança. Mas é preciso também dizer: o filósofo falará quando tiver pensado. E pensará quando as condições do pensar estiverem reunidas. Porque é essa liberdade que constitui a dignidade do seu ofício.
A função do filósofo é interpretar o seu tempo -não como simples diagnóstico, mas como exercício de desvelamento. Ele deve tornar pensável aquilo que se tornou habitual, visível o que está oculto, audível o que o ruído abafa. Num país como Moçambique, marcado por injustiças históricas, desigualdades profundas e crises políticas reiteradas, o filósofo deve abrir espaço ao pensamento crítico e manter viva a possibilidade de uma ética da reflexão. A urgência não pode apagar a exigência de profundidade. O filósofo é guardião do tempo longo – mesmo nos dias curtos da urgência.
O silêncio dos filósofos não é, muitas vezes, ausência. É escuta. É recusa de gritar onde se exige um canto. É o tempo da meditação onde se impõe a pressa. Pensar é ter a coragem de não calar, mesmo quando se fala baixo. E é isso que devemos exigir aos nossos filósofos: não pressa, mas coragem. Não ruído, mas profundidade. Não palavras de ocasião, mas ideias que resistam ao tempo.

Já no Manifesto por uma Terceira de 2019 advertíamos sobre o “espectro de desolação e de dissolução (que) paira sobre Moçambique” , talvez pressentindo o então por-vir moçambicano de 2024 e 2025 (onda de “manifestações”). Nos últimas palavras sentenciávamos que “Não há justiça sem liberdade e nenhuma busca de liberdade pode ser tal, se não compreender a dimensão da justiça”. Ao mesmo tempo que interpretávamos os sinais dos tempos que se aproximavam, agíamos, usando a palavra.
O verbum/Logos (oral ou escrita) é o pensamento em acto. O pensamento sem acção é oco, da mesma forma que a acção sem pensamento é vazia. O nosso engajamento é com uma acção pensada. A coruja da Minerva chega ao crepúsculo (in grau), quando tudo já aconteceu; mas ela vai descansar ao amanhecer (in grau) depois de iluminar o que vai ainda acontecer. É o cinzento no cinzento (grau in grau) hegeliano. Só que, em Moçambique (e em África em geral), o nosso crepúsculo e o nosso alvorecer, não são cinzentos, mais um açafrão multicolorido, como o nosso tempo por-vir (devir) que o filósofo fareja, no meio de muita angústia.
Este é o nosso tempo. Esta é a nossa praça. E este é, ainda e sempre, o lugar do filósofo!
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