‘Temos uma ferida aberta, que não cicatriza nunca’, diz autora de livro sobre Brilhante Ustra

Jornalista, escritora e pesquisadora, Cleidi Pereira lançou seu livro Confissões de Um Torturador – A Última Entrevista do Coronel Ustra (Insular, 2025) na Associação Riograndense de Imprensa (ARI), neste mês. Ela relata que, na conversa, o temível chefe do DOI-Codi do II Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), admitiu a prática de “interrogatórios contínuos” – técnica de tortura que impede os presos de dormir. “Essa entrevista foi o mais próximo que Ustra chegou de uma confissão”, argumenta.

De codinome Dr. Tibiriçá, Ustra chefiou de 1970 a 1974 o maior centro de martírios, desaparecimentos e assassinatos da ditadura de 1964. Mais tarde, a Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo catalogou mais de 500 denúncias de tortura praticadas no DOI-Codi sob o comando do coronel. Em 2008, a justiça paulista condenou Ustra por sequestro e tortura. Foi o primeiro oficial sentenciado por eventos ocorridos durante o regime militar.

Cleidi Pereira começou no jornalismo como repórter nos jornais Correio do Povo e Zero Hora, em Porto Alegre, onde recebeu os prêmios ARI e Direitos Humanos de Jornalismo. Mestre em Ciência Política e Relações Internacionais, autora também de Entre a cruz e a espada: a (des)penalização do aborto na América Latina (Insular, 2021), vive hoje em Portugal. Em Lisboa, faz doutorado em Sociologia e pesquisa sobre violência obstétrica contra imigrantes.

Nesta entrevista, ela descreve a experiência. Para Cleidi,“o fato de ter quem exalte torturadores é sintoma de uma ameaça permanente de retrocesso, de um país que não fez as pazes e que desconhece o seu passado”.

Brasil de Fato RS: Como foi conseguir uma entrevista com o maior torturador da história recente do Brasil?

Cleidi Pereira: O que me moveu foi a busca pela verdade, que é um dos pilares do jornalismo, e uma certa esperança quixotesca. Afinal, iria estar diante de uma figura que passou a vida inteira negando os crimes que cometeu. No entanto, essa entrevista – que teve o dobro do tempo do depoimento dele à Comissão Nacional da Verdade, onde se recusou a responder a muitas perguntas – foi o mais próximo que Ustra chegou de uma confissão. Diante da minha insistência, em certo momento, por exemplo, ele admite o uso de interrogatórios contínuos, ou seja, a privação de sono, que é um tipo reconhecido de tortura.

“Ele fez uma ´brincadeira que me provocou um frio na espinha. Ameaçou torcer o meu pescoço”

Foi difícil marcar a entrevista?

Foi fácil conseguir o contato da casa dele. Estava disponível e atualizado na lista telefônica numa época em que os telefones fixos eram mais comuns do que hoje. Depois, foram algumas semanas insistindo, ligando algumas vezes e conversando com a esposa dele, Joseíta. Minha última “cartada” foi comprar o livro dele A Verdade Sufocada, que se transformaria na bíblia da extrema-direita. Esse gesto acabou por auxiliar no convencimento do casal, que me recebeu em sua casa em Brasília.

Qual foi a sensação de conversar friamente com Brilhante Ustra?

Quando falei com ele por telefone pela primeira vez, ele fez uma “brincadeira” que me provocou um frio na espinha. Ameaçou “torcer o meu pescoço” caso eu não divulgasse o seu livro. Era um lembrete – mesmo para quem não sentiu na pele as consequências da ditadura – sobre de quem se tratava. Na entrevista, marcada por blocos de perguntas mais tensos e outros, digamos, mais leves, ele se exaltou, bateu na mesa, mas também manteve a cordialidade. Do preparo à entrevista, foi um misto de sensações: medo, aversão, arrependimento…

“Ter quem exalte torturadores é sintoma de uma ameaça permanente de retrocesso”

O que compreendeste daquele momento de nossa história?

Compreendo que, como sociedade, temos uma ferida aberta, que não cicatriza nunca. Um trauma. Que a Lei da Anistia significou uma espécie de pacto de amnésia coletiva, o que explica o fato absurdo de a memória de um torturador reconhecido pela Justiça passar a ser exaltada. Ustra morreu impune.

No seu último ano de vida, fazia sessões de acupuntura, enviava seus livros pelos correios e passava horas respondendo emails. É preciso lembrar que a tortura também é um instrumento político, de neutralização de dissidentes… É algo tão desumano e destruidor mas que sobrevive no modus operandi de diversas instituições. E o fato de ter quem exalte torturadores é sintoma de uma ameaça permanente de retrocesso, de um país que não fez as pazes e que desconhece o seu passado. Precisamos de mais políticas públicas contra esse esquecimento.

Resgatar memória histórica é um papel fundamental do jornalismo?

Sem dúvida. E acredito que essa proliferação de fake news tem como objetivo político enfraquecer o jornalismo, que precisa ficar enxugando gelo. Por isso, é preciso destacar a relevância de veículos e profissionais independentes nesse momento em que vivemos.

“As mensagens com elogios à figura (de Ustra) foram um dos motivos para publicar agora, 11 anos depois, a entrevista na íntegra”

Sentiste medo ou sofreste alguma ameaça depois de divulgada a entrevista?

Não recebi ameaças, mas as mensagens com elogios à figura foram um dos motivos para publicar agora, 11 anos depois, a entrevista na íntegra. Com a devida contextualização, relatos de vítimas e nomes/biografias de vítimas do Ustra, conforme o relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

“O que me moveu foi a busca pela verdade, que é um dos pilares do jornalismo, e uma certa esperança quixotesca”, afirmou Cleide – Foto: Walmaro Paz

O que achas do pedido de anistia aos golpistas do 8 de janeiro que está sendo discutido no Congresso?

Sou contra. Abre um precedente arriscado, fragilizando uma democracia que nem consolidada está.

Por que foste para Portugal?

Digo que foi um autoexílio, pós-golpe da Dilma, já pressentindo a tempestade política e social que o nosso país enfrentaria. Minha filha mais velha nasceu em janeiro de 2016 e a maternidade me obrigou a recalcular a rota, pretexto para fazer um mestrado em Ciência Política.

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