Agrotóxicos são usados como armas químicas em conflitos fundiários e atingiram mais de 17 mil famílias em 2024, aponta CPT

O relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT) sobre conflitos no campo, publicado nesta quarta-feira (23), revelou uma situação assustadora: existe uma guerra química em curso no Brasil. Os alvos são quilombolas, camponeses, assentados da reforma agrária e indígenas. Somente em 2024 mais de 17 mil famílias brasileiras foram vítimas desse crime. São apontados como grandes responsáveis os agronegociantes invasores interessados em expandir suas fronteiras agrícolas.

Ao todo, foram 276 ocorrências deste tipo, envolvendo 17.027 famílias, em mais de 3,3 milhões de hectares. Esses números representam um aumento de 763% no número de conflitos e 582% no de famílias atingidas pela guerra química em relação a 2023. Naquele ano, houve 32 conflitos e 2.498 famílias vítimas de intoxicação por agrotóxicos.

“Agrotóxicos são armas químicas do agronegócio contra a população camponesa, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”, atesta a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, autora do artigo no relatório. “Podemos afirmar que essas armas químicas e seu pacote tecnológico se somam ao arsenal de armas de fogo e demais mecanismos que há décadas vem servindo para destruir os modos de vida dessas populações e viabilizar a expropriação dos seus territórios”, completa.

Conflitos envolvendo uso de agrotóxicos, mapeados pela CPT em 2024. Fonte: CPT

Dos 276 conflitos analisados, 198 mencionam os termos “pulverização aérea”, “avião” ou “drone”. Uma das ocorrências envolve sete trabalhadores rurais vítimas de trabalho análogo à escravidão ou superexploração, onde os agrotóxicos estão entre os componentes que caracterizam a violação trabalhista. Outros 44 casos se referem a intoxicação individualizada, em diversos contextos, que ocorre quando há informações detalhadas sobre as vítimas, como gênero, idade ou identificação social.

Para a pesquisadora e pós-doutora em geografia humana, Larissa Bombardi, essa prática é uma manifestação do colonialismo químico, que perpetua a violência e a desigualdade no campo.

“Durante o colonialismo clássico, os povos originários foram expulsos com violência para dar lugar às monoculturas. Esse foi o processo pelo qual nossos países, os países latino-americanos, se consolidaram como países. Então esse conflito, essa aniquilação foi a forma com que o latifúndio se impôs no Brasil e em outros países. O que acontece hoje é que, além da violência física, que persiste, agora tem essa modalidade que é a violência química”, destaca Bombardi, autora do livro Agrotóxicos e colonialismo químico.

A pesquisadora critica a falta de fiscalização e a lentidão das autoridades brasileiras em proibir pesticidas perigosos no Brasil. “Na União Europeia, a pulverização aérea é proibida. Já passou da hora de proibir [no Brasil]”. Bombardi critica a falta de fiscalização sobre a utilização e os modos de aplicação dos agrotóxicos considerados altamente tóxicos. “Obviamente que a nossa legislação prevê fiscalização para isso, e o que a gente vê é que essas fiscalizações realmente não acontecem, nem há fiscais suficientes para fiscalizar”, denuncia.

Perfil das vítimas

O estado com o maior número de ocorrências é o Maranhão, responsável por 82% dos registros. Segundo a campanha, o aumento nos números reflete também o incremento na fiscalização e no incentivo às denúncias. “Dos 228 conflitos registrados no Maranhão, 68% ocorreram na mesorregião do Leste Maranhense, segunda maior região produtora de soja no estado, e que teve um crescimento de 124% na área plantada desde 2000”, afirma o texto.

Mas o maior número de famílias atingidas está no estado do Mato Grosso do Sul, com o total de 7.538, em 17 conflitos desta natureza, sobretudo envolvendo povos indígenas.

Perfil das vítimas do uso de agrotóxicos como armas químicas em conflitos fundiários. Fonte: CPT

Para Bombardi, não há como dissociar essas situações do modelo agrícola predominante no Brasil. “A gente está falando de um modelo de agricultura que não atende o interesse da população brasileira como um todo. Na verdade, a gente viu diminuir o número de postos de trabalho no campo de forma muito significativa nos últimos dez anos, a propriedade da terra concentrou, o desmatamento aumentou, a produção de alimentos para consumo cotidiano diminuiu”, destaca.

Crianças não estão seguras

Segundo o artigo publicado pela campanha no relatório anual da CPT, nem mesmo as crianças estão a salvo da guerra química provocada pelo agronegócio. O texto relata casos de pulverização de agrotóxicos próximo a escolas.

“No dia 3 de maio de 2013, um avião sobrevoou a escola São José do Pontal, no assentamento Pontal dos Buritis, em Rio Verde (GO). Durante 20 minutos, o avião despejou o agrotóxico Engeo Pleno, da Syngenta, sobre as crianças que estavam em horário de recreio. Dos quase 100 alunos que estavam no local, 42 foram levados a hospitais da região, sendo 29 ficaram internados. Muitos deles tiveram sequelas permanentes, sendo que atualmente o então diretor da escola, e um aluno atingido sofrem de câncer”, relata o texto.

“A contaminação atinge não só territórios, as águas e as nascentes, mas também as comunidades, moradias e escolas, adoecendo e assassinando quem combate o agronegócio e suas práticas destrutivas”, diz outro trecho. O documento também destaca a impunidade sobre os crimes. Segundo a campanha, uma “análise detalhada de 30 casos emblemáticos envolvendo agrotóxicos verificou que apenas em 11 desses casos ocorreu algum tipo de responsabilização”.

“O padrão de impunidade acaba sendo perpetuado pelo próprio Sistema de Justiça que assegura, seja pela falta de acesso à justiça como pela impunidade, as condições de reprodução da violência no campo e as condições de perpetuação da estrutura agrária vigente”, diz o artigo.

Relatos

O artigo elaborado pela campanha contra os agrotóxicos menciona relatos de despejo de substâncias químicas em plantações de pequenos agricultores, quilombolas e indígenas. Um deles ocorreu no Quilombo de Providência, localizado em Salvaterra (PA), onde moradores relataram o despejo irregular de agrotóxicos em uma plantação de arroz da comunidade, em março de 2024. Dois meses depois, um sítio de uma família agricultora em Tamandaré (PE) foi invadido por cerca de 30 homens que jogaram veneno na lavoura. Finalmente, o texto menciona os indígenas Guarani Kaiowá, vítimas de ataques químicos na região de Caarapó (MS).

Além do risco à saúde, muitos agricultores têm sido impedidos de comercializar seus produtos em feiras de alimentos orgânicos devido à contaminação provocada. No Vale do Mucuri, no Nordeste de Minas Gerais, as famílias têm documentado a aplicação irregular de agrotóxicos sobre as lavouras de pequenos agricultores da região e, inclusive, em áreas protegidas. Os agricultores denunciam ainda a venda de agrotóxicos por empresas não autorizadas.

A reportagem conversou com uma trabalhadora rural da região de Jampruca (MG), no Vale do Mucuri, que relata ameaças por denunciar os casos de contaminação proposital com uso de agrotóxicos, e por isso, prefere manter o anonimato. Ela faz parte de um grupo de coletoras de sementes, que faz um trabalho de reflorestamento em áreas anteriormente degradadas, localizadas dentro de assentamentos da reforma agrária.

“Temos nossa reserva legal cercada, esperando para ser replantada, para ser enriquecida com espécies nativas. E tem muitas famílias que também fizeram um cercamento para preservação do topo dos morros, das áreas de APP [Áreas de Preservação Permanente]. Então, estamos trabalhando muito para reflorestar essa terra que a gente pegou totalmente degradada e hoje já temos várias aves, vários animais que voltaram para a região, porque antes aqui não tinha nada, só o capim e boi”, relata a agricultora.

Segundo ela, a pulverização de agrotóxicos na região tem afetado árvores consideradas “matrizes” para a coleta de sementes. E lembra que algumas delas já nem existem mais. “A preocupação é de que essa pulverização aérea possa chegar até aqui, porque essas espécies que a gente está replantando, que a gente está trazendo de volta, a gente já nem consegue outras sementes porque as matrizes onde a gente coletou essas sementes já não existem mais aqui na região”, explica.

O Brasil de Fato teve acesso a vídeos de drones realizando a pulverização irregular e relatos de agricultores e coletores da região. Num deles, uma agricultora que também prefere não se identificar, faz um chamado à ação coletiva das comunidades afetadas.

“Os fazendeiros nem moram na região: eles vêm, jogam veneno e vão embora. A gente precisa se juntar e ir na prefeitura porque isso é um absurdo”, diz o áudio.

“Olha o pé de amora como está, gente, morrendo tudo”, mostra outra agricultora em um dos vídeos. “O rapaz jogou com drone a 400 metros. E foi ontem, e já está tudo assim. Até o mato está morrendo. O que a gente vai fazer?”, seguiu a trabalhadora.

Josean Vieira, conhecido como Jota, é técnico agrícola do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) na região, e tem organizado as diversas denúncias de atividades irregulares envolvendo a pulverização de químicos por lá. Ele conta que a situação tem desmotivado os agricultores a produzirem orgânicos.

“É um prejuízo não só financeiro, mas também do agricultor que desiste, desanima, e diz que não vai mais produzir”, disse Vieira.

Segundo ele, há um esforço para criar um procedimento de denúncia para garantir que os crimes não fiquem impunes. “A gente quer criar um procedimento de denúncia, de análise e de levantamento das provas, porque, se eles tivessem condições de provar que foram contaminados, poderiam até circunstanciar a denúncia e pedir indenização para a pessoa que causou problema para eles”, destaca Jota.

Embora a situação atinja dezenas de agricultores, Jota garante que há um estrito controle sobre os alimentos que atualmente são comercializados nas feiras de orgânicos da região, que são comprovadamente livres de contaminantes.

Como chegamos a esse ponto?

A campanha destaca medidas como a Lei Kandir (Lcp87), de 1996, que isenta de impostos os produtos primários para exportação e o Convênio 100/97, que prevê a redução de 60% na alíquota do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para agrotóxicos responsáveis por promover o atual modelo agroexportador de produção alimentar. “Naquele momento histórico, o Brasil selava sua opção como Estado de priorizar o superávit na balança comercial a qualquer custo”, destaca o texto.

A utilização de agrotóxicos como armas químicas em conflitos fundiários teve como resultado a perda de área com cultivos de alimentos, que deu lugar a produtos voltados para a exportação, as chamadas commodities. “Entre 2000 e 2023, a área plantada de soja cresceu 225%, a de milho 78% e a de algodão 111%”, afirma o documento. “Ao investirem na exportação de produtos primários, conseguem ganhos na balança comercial, porém perdem na geração de valor agregado, por um lado, e sacrificam suas populações e os bens da natureza, com as consequências da produção massiva de commodities agrícolas, por outro”, diz outro trecho.

Nova Lei dos Agrotóxicos (Lei nº 14.785) é apontada como um agravante das situações de violência envolvendo o uso dessas substâncias químicas. Leandro Taques

O texto menciona ainda a nova Lei dos Agrotóxicos (Lei nº 14.785) como um agravante de toda essa situação. “Ainda que a nova lei não seja tão radical quanto a primeira proposta de 2015, a estrutura principal da Lei 7.802/89 foi quebrada: o Ministério da Agricultura passa a ter maior poder do que os órgãos da saúde e meio ambiente, e os critérios proibitivos foram trocados por condições genéricas, como ‘risco inaceitável para os seres humanos ou para o meio ambiente’”.

A campanha contra os agrotóxicos destaca ainda as fortes resistências do Ministério da Agricultura em aderir ao Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (Pronara), que existe desde 2012, mas que não teve sua versão atualizada no atual governo “e aguarda o lançamento em meio a embates, novamente, com setores ruralistas presentes no governo”.

Colonialismo químico

Segundo o texto da campanha contra os agrotóxicos, sete dos 10 agrotóxicos mais vendidos no Brasil são proibidos na União Europeia (UE). Enquanto países europeus e norte-americanos impõem restrições ou mesmo o banimento de determinados agrotóxicos, as empresas produtoras desses produtos químicos continuam sediadas nesses mesmos países, despejando tudo o que o Norte não quer, no Sul Global. Essa contradição é o que alguns pesquisadores chamam de “colonialismo químico”.

“Países do Norte Global que sediam as empresas transnacionais agroquímicas conseguem ter legislações mais protetivas para seus cidadãos, ao mesmo tempo em que estas empresas fazem lobby nos países periféricos para flexibilizar legislações e conseguir lucrar por mais tempo com substâncias proibidas em seus países. Com isso viabilizam a existências dos double standards que possibilitam a comercialização no Sul Global de substâncias altamente tóxicas já banidas no Norte Global, dando continuidade ao fluxo de capitais do saqueio colonial, por meio da extração e acumulação de nossas riquezas”, diz o texto.

O documento cita o exemplo do Paraquat, um herbicida fabricado pela Syngenta, que foi proibido na UE em 2007 e só teve sua proibição aprovada no Brasil em 2020. “Detalhe: entre 2017, quando a proibição foi anunciada, até 2020, quando foi efetivada, as vendas explodiram: em 2018, houve crescimento de 12% em relação ao ano anterior, e em 2019 as vendas cresceram 24%. Ou seja: após a União Europeia banir o Paraquat por ser perigoso demais para seus cidadãos, a Syngenta conseguiu lucrar por mais 13 anos com este agrotóxico no Brasil.”

Para Bombardi, essa é outra face perversa do colonialismo químico. Ela explica que as mesmas leis que proíbem o uso de determinadas substâncias em países do norte não mencionam qualquer tipo de vedação à fabricação pela indústria interna, muito menos a venda fora do território nacional. “A própria regulação mundial para substâncias tóxicas é, em si, colonialista”, ressalta. “A União Europeia está protegida para continuar exercendo uma relação absolutamente desigual e colonialista com os países do Sul”, destaca a pesquisadora que, por outro lado, pondera: “Eles [os europeus] não estão numa bolha. Uma grande parte dos alimentos que a gente consome na Europa são alimentos, em grandíssima parte, importados”, comenta.

No mesmo sentido, Bombardi destaca que o outro lado do colonialismo é a colonialidade construída a partir de uma história, calcada na espoliação de recursos e na concentração de riquezas.

A pesquisadora e autora do livro Agrotóxicos e colonialismo químico, Larissa Bombardi. Divulgação/Arquivo pessoal

“A colonialidade é essa nossa característica feita em cima do latifúndio, essa nossa formação histórico-social, geográfica, que se deu em cima do latifúndio, num poder que não se diluiu até hoje. Então, quem é que tem majoritariamente o controle do Senado? São justamente os representantes dos grandes proprietários de terra, quem tem majoritariamente o controle da Câmara dos Deputados? Também são eles. Então, é uma perpetuação dessa lógica que é uma lógica colonial”, destaca a pesquisadora.

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