A mobilização das comunidades de Córregos, Poções e Tamanduá, localizadas nos municípios de Riacho dos Machados, Serranópolis e Rio Pardo de Minas, no Norte de Minas Gerais, pode garantir a criação de uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) na região. Nesta semana, nos dias 25 e 26 de abril, acontecem duas audiências públicas sobre a constituição da unidade de conservação.
A demanda surgiu das próprias famílias, cujo modo de vida é baseado na agricultura familiar, criação de animais e cultivo de frutos silvestres, como o pequi, a mangaba e o coquinho.
Os territórios são compostos predominantemente pelo bioma Cerrado, que, apenas entre agosto e novembro de 2024, teve 67,5 km² de desmatamento ilegal no estado. Além disso, a região sofre com a ameaça da chegada da atividade minerária e do cultivo de eucalipto.
Por isso, na avaliação de Luiz Paulo Siqueira, biólogo e membro da direção nacional do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), a possibilidade de criação de uma RDS é um marco importante para a proteção socioambiental das comunidades.
“A criação da RDS é uma necessidade, frente a esse cenário de crise ambiental, ainda mais no Cerrado, que tem sido o bioma mais impactado nacionalmente. A reserva será um instrumento que vai potencializar políticas públicas de fomento à agricultura camponesa, aliando a proteção ambiental e os modos tradicionais de manejo do Cerrado com melhorias na condição de vida do povo”, defende.
No ano passado, foram desmatados mais de 700 mil hectares de cerrado no Brasil.
As audiências públicas, convocadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em parceria com o Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Riacho dos Machados e com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA), acontecem na sexta-feira (25), a partir das 14h, na quadra do Quilombo Peixe Bravo; e no sábado (26), a partir das 9h, na quadra da comunidade de Córrego Verde.
Joeliza Aparecida de Brito Almeida, residente da comunidade Córregos, na zona rural de Riacho dos Machados, agricultora familiar e membro do STR e do CAA, destaca a importância da participação popular na definição sobre a criação da RDS.
“Podemos ter o território protegido e também atuar em busca de políticas públicas que tragam a defesa da continuidade do modo de vida das comunidades, evidenciando que o povo existe, mas também buscando alternativas de desenvolvimento”, comenta.
Por que criar uma RDS?
As Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) são áreas naturais de domínio público que abrigam populações tradicionais, que dependem de formas sustentáveis de utilização dos recursos naturais. O objetivo da criação das reservas é proteger a natureza, ao mesmo tempo em que se assegura a garantia dos modos e da qualidade de vida das comunidades.
Diante do atual cenário do Norte de Minas, Frederico Drumond Martins, coordenador do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em Minas Gerais e Espírito Santo, destaca a iniciativa como uma oportunidade de desenvolver uma experiência positiva de relação entre o ser humano e o meio ambiente.
“Com a unidade de conservação, podemos avançar na prática de compatibilizar a presença humana com a conservação ambiental. Ou seja, propor e realizar a conservação inclusiva. Existe quem defenda a conservação sem a presença de pessoas no território, diante do alto comportamento predatório. Mas há também a perspectiva de que a única alternativa para preservar a natureza é incluir as pessoas no processo”, explica.
“É preciso reconhecer que o modo de vida de algumas comunidades, muitas vezes, ajuda a proteger a natureza. Essa é a importância da criação da reserva”, continua.
Com a implementação da RDS, as instituições e as comunidades esperam garantir o equilíbrio ecológico; regular empreendimentos com potencial impacto ambiental; assegurar a manutenção do abastecimento de água na região, que tem clima semiárido; fortalecer a participação popular e cooperação entre os diversos atores na execução de políticas públicas; além de outras garantias às famílias e territórios.
‘Proteção dos povos’
A região é rica em comunidades tradicionais, entre elas a Remanescente de Quilombo de Peixe Bravo, que é certificada pela Fundação Cultural Palmares e fica nas margens do rio Peixe Bravo.
Ao todo, são 1,5 mil quilombolas que possuem uma profunda relação com os recursos ambientais e humanos do território, protegendo a área e, em comunhão com ela, buscando os recursos sociais, culturais, econômicos e espirituais para sua sobrevivência.
Joeliza Aparecida de Brito Almeida destaca que a expectativa dos moradores da região é de que o projeto saia do papel o mais rápido possível.
“Nós acreditamos que ter uma unidade de conservação sustentável seria de grande valia para a proteção dos povos e comunidades tradicionais da região, preservando a natureza e os modos de vida. Nós temos uma expectativa muito grande mesmo. E muita esperança também na mobilização que tem sido feita. O projeto será muito valioso para a região”, destaca.
Estudos técnicos indicam importância da RDS
A elaboração da proposta de uma RDS na região se deu com base em estudos técnicos realizados pelo ICMBio e o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA). Os resultados da pesquisa foram divulgados neste mês, em um relatório publicado pelo governo federal, sob gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
A análise indica que os territórios podem ser caracterizados como prioritários para ações de conservação da biodiversidade e da presença de comunidades tradicionais, uma vez que, na área que deve ser abrangida pela Reserva de Desenvolvimento Sustentável Tamanduá-Poções-Peixe Bravo, reside uma ampla riqueza ambiental, cultural, histórica e humana.
“Tal fato demonstra a necessidade de assegurar a conservação ambiental, juntamente com a proteção do modo de vida tradicional das populações locais. A criação da RDS Tamanduá-Poções-Peixe Bravo consiste na melhor alternativa técnica, social e ambiental para a realidade local, buscando garantir a proteção dos territórios, da forma que as comunidades entendem eficaz e compatível com seu modo de vida”, diz o relatório publicado pelo MMA e o ICMBio.
No projeto, a unidade de conservação abrangerá mais de 57,4 mil hectares de Riacho dos Machados; 4,5 mil hectares de Serranópolis; e aproximadamente 7,7 mil hectares de Rio Pardo de Minas. Os municípios possuem, respectivamente, 8,7 mil; 4,3 mil; e 28,2 mil habitantes.
Raimundo Pereira da Silva, uma das lideranças do Quilombo Peixe Bravo, vê a proposta como um impulso para a preservação do ecossistema local, mas também como uma possibilidade de alavancar o desenvolvimento sustentável da região.
“Aqui, nós temos várias riquezas naturais que os estudos indicam que só existem nesta região, como paleotocas, cavernas, plantas raras e várias espécies nativas. Aqui abriga uma área que ainda tem bastante concentração de matas preservadas, mas também bem ameaçadas pela mineração. A proposta também ajuda a preservar o modo de vida e as culturas do povo que ali vive há muito tempo”, defende.
Ameaça da mineração e guerra de informação
Outro fator que, na avaliação das comunidades, torna urgente a implementação da RDS é a ameaça de empreendimentos minerários na região. Experiências de municípios onde a atividade acontece de forma ostensiva e predatória indicam que, além de impactar a natureza e a paisagem local, a mineração expulsa os povos tradicionais dos seus territórios.
Frederico Drumond Martins explica que, neste momento, não existe nenhum projeto minerário em vias de acontecer legalmente na região. Porém, segundo ele, as comunidades já convivem com a prática ilegal da atividade.
“Existe atividade de mineração clandestina, onde o próprio recurso natural, o recurso mineral, é usurpado. Ter ali uma área protegida, com a presença do governo federal, com uma gestão de unidade de conservação, vai coibir muito essa prática da usurpação ilegal do minério”, explica o coordenador do ICMBio.
Ele também destaca as grandes plantações de eucalipto como outra ameaça aos modos de vida das comunidades.
“Os grandes eucaliptais, substituindo o Cerrado, ameaçam o modo de vida tradicional e impactam muito a natureza. Com uma RDS, podemos ter um modelo mais sustentável, valorizando o Cerrado e as atividades desenvolvidas no bioma”, continua Martins.
Outro alerta é a movimentação de empresas que têm buscado autorizações para fazer pesquisas na região. Para Raimundo Pereira da Silva, isso já é motivo suficiente para preocupação.
“São empresas que a gente nem sabe o nome, fora as clandestinas, que roubam o minério, gerando muita destruição local e assoreamento dos rios, por exemplo. São empreendimentos que não têm preocupação com os moradores”, denuncia.
Luiz Paulo Siqueira relata que, com a movimentação pela criação da RDS, as empresas já vêm atuando para dificultar a criação da unidade de conservação.
“Há uma guerra de informação, com o processo de criação da RDS. As empresas de mineração e eucalipto estão enganando as comunidades, afirmando que o projeto irá prejudicar a agricultura familiar. Sendo que, na verdade, a RDS vai beneficiar o território, defendendo-o dos interesses da monocultura de eucalipto e da mineração predatória”, enfatiza o dirigente do MAM.
Décadas de mobilização
O processo de luta das comunidades pela proteção do território iniciou ainda na década de 1990. Na época, foi criado o assentamento Tapera, mas uma área rica em biodiversidade ficou fora do loteamento. Por isso, a população local começou a se organizar e reivindicar a criação de uma reserva, como conta Joeliza Aparecida de Brito Almeida.
“Eles viram que, sem isso, a área ficaria exposta e ameaçada inclusive de ‘extinção’ de espécies da fauna e da flora. Aí, começou toda uma luta e buscamos os órgãos competentes para que a reserva fosse criada”, relembra.
Nos anos seguintes, o ICMBio visitou a região e realizou reuniões junto às comunidades tradicionais, como forma de chegar a uma proposta adequada.
“E, agora, há a possibilidade de conservação dessa área, que é uma área quilombola, que já tem uma proteção federal, mas queremos colocar nela mais uma proteção, para garantir os direitos e a preservação do povo, do lugar e, principalmente, da água, que é o nosso bem mais precioso e que hoje está muito escasso”, destaca a agricultora familiar.
Luiz Paulo Siqueira explica que, considerando as características do território, o risco de desabastecimento hídrico e as ameaças da mineração, a proteção da área é urgente.
“A região da RDS é o único sistema geo ferruginoso que ainda não foi minerado no Brasil. É justamente essa formação rochosa, com as cangas ferruginosas, que permite a formação de aquíferos que garantem nascentes, a qualidade e o volume de água do rio Peixe Bravo. Se liberar a mineração no território, significará a destruição desse aquífero, secando nascentes, contaminando as águas e agravando a condição hídrica da região”, conclui.