Caminhando contra o vento (por Marcos Magalhães)

Já passava do meio de dezembro quando Caetano Velloso e Maria Bethânia subiram ao palco na Allianz Arena, em São Paulo. Mas o que cantaram a seguir, meio século depois do sucesso inicial, ainda incendiou um estádio lotado.

“Caminhando contra o vento”, começou Caetano, “sem lenço e sem documento, no sol de quase dezembro, eu vou”!

As guitarras eram tão intensas como em 1967, quando soaram agressivas a ouvidos conservadores. Mas as palavras logo encontraram na plateia mais jovem a mesma acolhida entusiasmada daquele final dos anos 60, quando a ditadura mostrava a face.

Tanto que a plateia do estádio do Palmeiras respondeu ao final da canção com o já conhecido grito de “sem anistia, sem anistia”.

O mesmo grito, aliás, ouvido ao final de sessões de cinema em Brasília após a exibição do documentário Os sonhos de Pepe, sobre a trajetória do ex-guerrilheiro e depois produtor de flores e presidente do Uruguai, Pepe Mujica.

Assim como Caetano, Mujica tornou-se símbolo de uma nova resistência. Não contra ditaduras, uma vez que os dois países mantêm seus regimes constitucionais, mas contra as ameaças à democracia e, no caso do uruguaio, também à saúde do planeta.

É como se os ecos de antigas lutas contra os regimes militares se unissem agora à resistência contra os defensores de regimes de extrema direita e contra os poderosos interesses econômicos que colocam em risco o clima e a vida na Terra.

As ameaças ao planeta são bem conhecidas. E podem tornar-se ainda mais perigosas depois da posse de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos, em 20 de janeiro. Cético a respeito da mudança climática, ele promete estimular a velha indústria do petróleo.

Os riscos à saúde das democracias também se tornam cada vez mais evidentes. Em artigo publicado na segunda-feira no londrino Financial Times, Gideon Rachman, principal comentarista do jornal sobre assuntos internacionais, acionou o alarme.

O jornalista identificou duas tendências que ameaçam a governabilidade das democracias de países mais ricos.

De um lado, o declínio do centro político e a ascensão de partidos populistas. De outro, o aperto fiscal criado por baixo crescimento, sociedades envelhecidas, a pandemia, a crise financeira de 2008 e as pressões por aumento dos gastos em defesa.

“O populismo e os problemas fiscais estão alimentando um ao outro e tornando cada vez mais difícil governar”, escreveu Rachman, ao citar as dificuldades enfrentadas por países como França, Alemanha, Canadá, Japão e Coreia do Sul.

A onda chegou ao Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro para presidente, em 2018. E quase se tornou um maremoto a bordo do golpe de Estado que naufragou apesar do entusiasmo que havia despertado em radicais de direita dentro e fora dos quartéis.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda navega em mares revoltos. A direita populista de Bolsonaro, mesmo que sem ele, aguarda apenas um escorregão para voltar ao poder, anistiar os responsáveis pela tentativa de golpe e unir-se, alegremente, a governos de mesma inspiração, a começar por Trump e pelo presidente da Argentina, Javier Milei.

Talvez por isso ecoem nos shows e nas salas de cinema os gritos contra essa anistia aos que ainda não foram sequer condenados.

Cinco décadas depois, os que soltam a voz contra a direita radical e populista também caminham contra o vento, desta vez um vento forte e espalhado pelo mundo.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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