Vila de Jericoacoara: empresária tem direito a reivindicar posse, mas acordo para devolução de área pode ser desfeito, dizem juristas


O g1 conversou com especialistas para entender a legalidade de acordo extrajudicial que envolve o estado do Ceará e Iracema Correia São Tiago, empresária de 78 anos, que reivindicou ser dona de mais de 80% da vila turística. Ex-mulher de fazendeiro se diz dona de 80% da Vila de Jericoacoara
A Vila de Jericoacoara, um dos destinos turísticos mais procurados do Nordeste, em Jijoca de Jericoacoara, no litoral do Ceará, vive um impasse desde que a empresária Iracema Correia São Tiago, de 78 anos, passou a reivindicar cerca de 80% daquelas terras.
Na última sexta-feira (25), o Ministério Público do Estado do Ceará interviu no caso, e expediu uma recomendação para que o acordo extrajudicial, que está em andamento entre a Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) e a empresária, fosse suspenso imediatamente.
Antes disso, a contraproposta da PGE-CE, que tem atribuição legal de defender direitos e interesses sobre o patrimônio imobiliário do Ceará, era de entregar 5% da vila à empresária, o que, no total, equivale a 4,9 hectares ou 49 mil m² do paraíso turístico.
Essas terras correspondem a áreas desocupadas nos limites da vila, em Jijoca de Jeri, mas cercadas pelo Parque Nacional de Jericoacoara.
Os moradores da região, por outro lado, pedem para ser ouvidos, e questionam a negociação entre a PGE-CE e a empresária. Eles têm realizado protestos na vila turística.
Ainda na sexta, a PGE-CE informou que o acordo em negociação já se encontra suspenso, e que nenhum título será emitido para a empresária até que o Conselho Comunitário de Jericoacoara apresente novas informações, no início de novembro.
O g1 conversou com advogados especialistas em questões fundiárias para entender a legalidade da reivindicação das terras, feita 40 anos depois da compra, em 1983, e sobre construção do acordo extrajudicial entre a PGE e a empresária.
O caso chegou à Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) em agosto de 2023 após a empresária procurar o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) com documentos que indiciavam sua posse sobre as fazendas Junco I, onde fica a Vila, e a Junco II, que fica no Parque Nacional de Jericoacoara.
Entenda qual a diferença entre a vila, a cidade e o Parque Nacional de Jericoacoara
Desde então, a PGE reconheceu a propriedade da empresária sobre as terras, e vem negociando o acordo extrajudicial, que é instrumento utilizado quando duas partes de um conflito negociam a resolução do problema de modo consensual e sem recorrer a um tribunal.
Iracema Correia São Tiago aparece em foto antiga revelada pela família ao Fantástico.
Reprodução
Em Jericoacoara, o turismo movimenta quase R$ 1 bilhão por ano. O valor do m² em Jeri pode chegar a R$ 12 mil, semelhante a Paris ou Milão. A vila de Jeri começou a ser habitada por pescadores no começo do século XX, segundo a moradora mais antiga, de 104 anos. Na década de 1970, chegaram os primeiros forasteiros.
Entenda abaixo o que prevê o acordo e o que dizem especialistas.
O que diz o acordo?
A empresária Iracema Correia São Tiago declarou possuir terras que fazem parte da Vila de Jericoacoara, isto é, terrenos do município. A área reivindicada por ela corresponde a 83% do território da Vila. Esses terrenos da Vila estavam sob controle do Governo do Ceará. Portanto, o acordo celebrado pela empresária com a Procuradoria-Geral do Estado diz respeito apenas à área da Vila.
Iracema deu o passo para a reinvindicação da área em julho de 2023, quando procurou o Idace. Na época, Iracema São Tiago apresentou a escritura de posse das terras ao instituto e fez uma proposta de conciliação.
Nessa proposta, Iracema cederia ao estado as áreas que estivessem tituladas a terceiros até dezembro de 2022. Isso corresponderia a 55,3 hectares (cerca de 62% da área da Vila de Jericoacoara). Em contrapartida, o restante da área deveria ser excluído da circunscrição da vila, e entregue à empresária (cerca de 38% da área da vila).
Em azul, as terras que passariam a ser da empresária após acordo.
Reprodução
Em resposta ao pedido da empresária, feito em julho de 2023, o Idace propôs que toda a área da Vila de Jericoacoara continuasse dentro da matrícula do estado, ou seja, não fosse destinada a ela. A defesa de Iracema não aceitou a negociação.
Com isso, em agosto de 2023 o instituto encaminhou o caso à PGE-CE , que emitiu um parecer oficial apontando a legitimidade das escrituras que Iracema possui.
A PGE-CE, então, fez uma contraproposta à empresária. Nesse acordo, segundo a Procuradora, conseguiu-se a renúncia dela de todas as terras que estivessem ocupadas por moradores ou quaisquer tipo de construções – mesmo estando dentro das áreas que ela reivindica.
Essas áreas, que correspondem a mais de 90% do que pertenceria à empresária, permaneceriam com o estado a fim de se dar continuidade ao processo de regularização da área, mantendo as pessoas em suas residências e o comércio local funcionando.
Sendo assim, somente terrenos que ainda estejam no nome do Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará, e que não estavam ocupados, é que passariam a ser de posse empresária — ou seja, ela obteria uma parte menor considerando o todo da vila. Além disso, todas as vias e acessos locais teriam de ser preservados.
O que dizem os especialistas?
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Governo do Ceará/Divulgação
Três juristas ouvidos pelo g1 apontam que o acordo é legal e afirmam que Iracema tem direito a reivindicar suas terras.
Eles contestam, no entanto, o motivo do estado ceder as áreas (mesmo as desocupadas) sem pensar antes em uma indenização, que é o processo mais comum em casos como este.
E dizem também que uma das questões principais é a ausência de transparência em relação aos moradores e empresários da Vila de Jericoacoara – parte também interessada na situação.
Para os especialistas, pode ter havido erro no processo de arrecadação.
A vila fica no município de Jijoca de Jericoacoara e é uma área arrecadada. Isso quer dizer que ela foi incorporada ao patrimônio público, uma vez que não havia sido localizado um proprietário com escritura pública. O processo de regularização fundiária começou em 1995 e concluiu-se em outubro de 1997. No início, a vila tinha 55,3 hectares. Hoje, são 88,2.
“É preciso saber se não há documentos que comprovem que houve uma falha no processo de arrecadação das terras. Que pode acontecer e que não tem a ver com corrupção, simplesmente com ineficiência, com prazo perdido, com procedimentos não cumpridos (…) O grande equívoco foi não criar um debate público mais amplo, trazendo, por exemplo, a associação (dos moradores) para junto da negociação.”, disse Lígia Melo, professora de Direito Administrativo e Legislação Urbanística e Ambiental da Universidade Federal do Ceará (UFC).
O advogado Jorge Umbelino aponta que quando um proprietário “perde” terras para o Estado ele precisa ser indenizado.
A defesa de Iracema Correia informou ao g1 por meio de nota que eles não tiveram conhecimento do processo de arrecadação. Nesses casos, é preciso haver uma notificação oficial, destacou Umbelino.
“A lei diz que ela deve ser indenizada em moeda corrente nacional ou em títulos da dívida pública. A terra já é pública e a pessoa que está dizendo ser a dona anterior tinha que ser indenizada. O acordo que está sendo feito para ressarcir com parcelas de terras remanescentes não é o mais correto, ao meu ver, porque as terras hoje são públicas. O Estado não pode simplesmente devolver o que é do Estado sem que a Assembleia Legislativa autorize, sem que haja um processo todo regularizado que a gente chama de desafetação (deixa de ser público para voltar a ser particular)”, contestou Jorge.
O especialista explica que acordos como estes precisam passar pelo gabinete do governador Elmano de Freitas e, em seguida, devem ser apreciados pela Assembleia Legislativa do Ceará (Alece).
“Para as terras deixarem de ser públicas, teria que passar por um procedimento de autorização legislativa. Não é simplesmente chegar e dizer ‘Iracema, o estado errou com você. Vamos lhe devolver’. Na minha opinião como jurista, deveria acontecer isso ainda [passar pelo Legislativo]”.
A PGE-CE respondeu, no entanto, que o caso de Iracema é um caso de reconhecimento de titularidade e não de doação. Se fosse um caso de doação, a Alece deveria ser acionada. O órgão também disse que o acordo está na fase final de “memoriais descritivos” e que aguarda as manifestações dos moradores que contestam a ação. Ainda não há prazos para a implementação do acordo e Iracema ainda não possui os títulos das terras – garantiu a PGE-CE.
Para o especialista, o que mais chama a atenção é que essas terras desocupadas que passariam a ser de Iracema poderiam servir aos moradores, sendo destinadas à construção de equipamentos públicos, hospitais, escolas, priorizando a coletividade.
Lígia Melo, professora especialista na área de pesquisa em questões urbanas e intervenção do estado na propriedade privada, disse que há, nesse caso, uma questão de interesse público “muito forte”.
“Nós estamos falando de direito à moradia das pessoas que moram nesses imóveis, nestes lotes, nesses parcelamentos”, destacou.
“Tem um princípio que rege a relação da propriedade imobiliária com o seu proprietário, que é a função social da propriedade. Então, essas terras são ocupadas há muitos anos (…) O Estado precisa ter sensibilidade e compreender que governança envolve transparência e democracia participativa.”, informou a professora.
Segundo Lígia, se o caso for para os tribunais a tendência é uma “visão privatista”.
“Temos estudos sendo feitos demonstrando que o comportamento do judiciário tem sido muito mais de decidir pelo direito privado do que decidir em prol da coletividade.”, disse Lígia.
Em nota enviada ao g1, o Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace) disse que durante o processo de arrecadação das áreas devolutas da Vila de Jericoacoara, realizado junto ao Cartório de Registro de Imóveis de Acaraú na década de 1990, não foram localizadas matrículas de propriedades inseridas na poligonal correspondentes às terras arrecadadas.
“Mesmo sem a identificação de certidões de titularidade à época, o Governo do Ceará, como em todos os processos de arrecadação públicos, inseriu uma ressalva na matrícula correspondente à área. Essa ressalva estabelece que, caso surgisse um proprietário com documentação legítima que comprove a propriedade de um imóvel dentro da poligonal, com registro anterior à arrecadação estadual, o Estado reconheceria esse direito, excluindo a área da matrícula pública”, afirmou o órgão.
O Idace também disse que a ausência de tecnologias como o georreferenciamento e outras ferramentas de precisão disponíveis “levou à sobreposição das propriedades”. “Dado o impacto desse processo, especialmente sobre as pessoas que já residiam e trabalhavam no local, a questão foi encaminhada à Procuradoria Geral do Estado do Ceará (PGE-CE).”
O acordo pode ser desfeito?
Acordo busca resguardar residentes, estabelecimentos e vias de acesso que já existem na Vila de Jericoacoara — Foto: Maristela Gláucia/SVM
Vila Kalango/Reprodução
Fabrício Luiz Raposo, um terceiro jurista ouvido pelo g1, também reforça que Iracema Correia São Tiago tem direito a reivindicar as terras.
Fabrício ainda explica que o acordo entre a PGE-CE e a empresária pode ser desfeito sob algumas condições. A primeira diz respeito ao que ele chama de “vício de consentimento”, e exemplificou:
“Ela foi obrigada a fechar um acordo contra a vontade dela ou não estava em posse de sua consciência. Caso haja defeito no consentimento da Iracema ou algum tipo de ilegalidade prevista no acordo (violação à legislação ambiental, por exemplo), então pode ser desfeito”.
“A Iracema possui direito de reivindicar a propriedade das terras dela. Isso é inconteste, mesmo após ela ter passado um longo período sem exercer a posse física. Como ela possui escritura pública, matrícula no nome dela e o Estado reconhece que é legítimo, (a propriedade é dela). Ela possui direitos, os moradores também têm direitos e o Estado também tem direitos. Uma sentença sempre deixa danos, para todos os envolvidos. A melhor saída é o acordo, de fato (…) São aqueles processos que duram uma vida inteira”, concluiu Fabrício.
No Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) tramitam três ações de desapropriação indireta contra a União e o ICMBio propostas por autores que alegam deter a propriedade de áreas no interior do Parque Nacional de Jericoacoara. Entre eles, estão os casos das fazendas Junco I e II, reivindicadas por Iracema São Tiago. Confira como estão os dois processos, segundo o TRF5:
Junco I (Processo nº 0800668-04.2017.4.05.8103): Este processo está concluso para decisão do juiz, o que significa que o magistrado já está com os autos para proferir uma sentença ou decisão final.
Junco II (Processo nº 0800669-86.2017.4.05.8103): No momento, o Ministério Público Federal (MPF) está com vistas para se manifestar a respeito de um pedido da parte autora, que questiona a perícia técnica realizada e solicita a realização de nova perícia. O MPF tem prazo até o dia 12 de novembro de 2024 para se posicionar. Após essa data, o processo também ficará concluso para decisão do juiz.
Empresária reivindica 80% da área de paraíso turístico no Ceará
Arte/g1
Empresária diz, em carta aberta, que não quer causar “qualquer transtorno para a coletividade”
Os advogados de Iracema Correia São Tiago enviaram à imprensa uma carta aberta. No texto, assinado pela empresária e pelos filhos dela, eles dizem que a reivindicação da família é para que seja dada a titularidade dos terrenos que não estão ocupados e que não sejam do interesse do Governo do Estado. “Asseguramos que qualquer uso desses terrenos no futuro ocorrerá respeitando o Plano Diretor do Município. Não existe a possibilidade de causarmos qualquer transtorno para a coletividade”.
“Desde que entendemos que tínhamos o direito de questionar a Arrecadação feita pelo Governo do Ceará, nossa condição para fazer isso era a de respeitar os terrenos legitimamente ocupados e titulados. Nunca se falou em tomar casas ou construções de quem quer que fosse.
Na carta, Iracema e os filhos afirmam que não são grileiros e que já investem “no desenvolvimento da região há muitos anos”. A história da família teria começado com o José Maria Machado (Zé Maria), da Firma Machado, que é de Sobral e chegou na região em 1979.
“A legitimidade da nossa documentação foi aferida e comprovada pelos órgãos competentes em níveis estadual e federal. Além do reconhecimento pelo Idace, ICMBio e SPU, a propriedade é certificada pelo Incra e georreferenciada. Já nos colocamos à disposição do Conselho Comunitário, do atual prefeito e do prefeito eleito para conversar e esclarecer quaisquer dúvidas, mas não obtivemos nenhum retorno. Seguimos à disposição para o diálogo”.
Ministério Público pediu suspensão de acordo
Vila de Jericoacoara, onde a maioria dos turistas se hospedam ao visitar a região
Gustavo Pellizzon/SVM
O Ministério Público do Estado do Ceará expediu recomendação, nesta sexta-feira (25), para que seja suspenso imediatamente o acordo em andamento entre a Procuradoria-Geral do Estado do Ceará (PGE-CE) e a empresária Iracema Correia São Tiago sobre as terras da Vila de Jericoacoara. De acordo com a PGE-CE, o acordo já se encontra suspenso e nenhum título será emitido para a empresária até que o Conselho Comunitário de Jericoacoara apresente novas informações, no início de novembro.
De acordo com o MPCE, a recomendação foi motivada pela necessidade de investigar o histórico do imóvel Junco I, que se sobrepõe em cerca de 83% ao território da vila. Segundo o órgão, esta investigação busca compreender o aumento da área, que passou de 441,04 hectares para 924,49 hectares desde o período da compra, em 1983.
“Esse acréscimo de 483,45 hectares se sobrepõe a áreas públicas do Estado e da União. Além disso, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) indicou, em processo judicial, que ainda há dúvidas sobre a titularidade do imóvel”, comunica o MPCE.
A recomendação do MPCE é de que o acordo fique suspenso imediatamente até que seja feita uma análise detalhada dos documentos. O documento foi expedido por meio da Promotoria de Justiça de Jijoca de Jericoacoara. A recomendação foi feita ao Estado do Ceará, à PGE-CE e ao Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará (Idace).
A recomendação adverte, também, que a omissão na adoção das medidas recomendadas pode resultar em medidas administrativas e judiciais cabíveis.
O órgão requisitou ao Estado, ao Idace e à PGE-CE a apresentação de documentos, como cópias integrais de processos administrativos e portarias relacionadas ao imóvel Junco I.
Segundo o MPCE, o documento foi encaminhado ao Juízo da Comarca de Jijoca de Jericoacoara, ao prefeito e ao presidente da Câmara Municipal, além de órgãos como o ICMBio e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Outras informações sobre o histórico do terreno e levantamentos topográficos foram requisitadas ao Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Acaraú e ao Cartório de Registro de Imóveis de Jijoca de Jericoacoara.
Entenda quais são os terrenos da empresária
As três propriedades da empresária estão inseridas no Parque Nacional de Jericoacoara (linha verde).
Reprodução
Além desta área da Vila de Jericoacoara, a empresária também provou ser dona de outras terras na região de Jijoca de Jericoacoara. Ela é dona da Fazenda Junco I, onde fica a Vila, e também da Fazenda Junco II (veja acima o mapa).
A Junco II possui cerca de 669,19 hectares. Estas áreas estão fora da Vila de Jericoacoara, mas tanto a Junco I quanto a Junco II estão sobrepostas às áreas do Parque Nacional de Jericoacoara
Como ficam dentro do parque, é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) realizar o processo de regularização fundiária. Em nota, o instituto disse que possui ciência do caso e vem acompanhando as informações repassadas pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara.
Prefeito eleito de Jericoacoara se manifesta contra acordo sobre terras da Vila
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