As chuteiras de ouro (por Gustavo Krause)

Ninguém merece, mas acontece: sete horas de espera para vencer o percurso Rio de Janeiro – Recife. Quatro horas no aeroporto do Galeão/Tom Jobim mais três de voo para chegar ao destino: aeroporto dos Guararapes/Gilberto Freyre, batismo de lugares e seres definitivamente históricos.

Bateu um misto de irritação e cansaço antecipados. Bobagem. É relaxar e aproveitar a permanência com alguma coisa mais útil do que submergir no espaço frenético de idas e vindas que movimentam os aeroportos. Como aproveitar? Primeiro, ocupar uma cadeira que permita recostar; segundo, usar o bálsamo da boa leitura. E o que seria a “boa leitura”? A leitura matutina dos jornais já a fizera, mesmo sem a convicção Hegeliana de que estava diante de uma “espécie de prece realista”.

Ao me socorrer da biblioteca que carrego no bolso – o Kindle – suficiente para minhas parcas habilidades digitais, lembrei-me da grandeza de Nelson Rodrigues que, sobre a arte de leitura e da releitura, ensinou: “Por tudo que sei da vida dos homens, deve-se ler pouco e reler muito. A arte de leitura é a releitura”, ou seja, fez eco da sabedoria milenar do estoico Sêneca que aconselhava: “é suficiente possuir apenas tantos livros quanto você puder ler”.

O peso da dúvida e a ansiedade da espera se transformaram numa sensação agradável de alívio quando fui direto na biblioteca do leitor digital e cliquei: A pátria de chuteiras/Nelson Rodrigues. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. Já li, reli, ora direto ou pulando de crônicas em crônicas, como diversão infanto/juvenil de um arqueólogo-mirim a reconstituir a apoteose de um ciclo histórico que findou quando, em 1970, os brasileiros-canarinhos puderam dizer a uma só voz: A Jules Rimet é nossa para sempre!

Sob o patrocínio do BNDES, a obra reúne crônicas contidas no livro À Sombra das Chuteiras Imortais: crônicas do futebol/Nelson Rodrigues; seleção e notas Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, ao longo das décadas de 50 a 70, como parte das homenagens ao centenário do autor.

No primoroso texto da apresentação, o então Ministro dos Esportes, Aldo Rebelo, revela a dimensão do escritor, cronista e maior dramaturgo brasileiro ao expandir o significado da obra rodriguiana no “olhar para as entranhas da identidade nacional”; ao perceber que no subconsciente do torcedor instalara-se o “complexo de vira-latas”, incapaz de vencer a soberba dos colonizadores; mais adiante, não poupa o pessimismo amargo do jornalismo esportivo ao defini-lo como “narcisos às avessas, que cospem na própria imagem”.

De fato, a cada releitura, a obra de Nelson cria e o mundo confirma frases imortais; fez nascer e viu crescer “o idiota da objetividade”; alertou para o sentido e a sonoridade da palavra “canalha” e, com sutileza, atribuiu aos cunhados que desejam a mulher do irmão; desnudou o moralismo abjeto que condena impiedosamente o “pecador” e se esconde sob o manto diáfano do cinismo; era, longe da empáfia acadêmica, um filósofo, filósofo “da vida como ela é”; demoliu as unanimidades e inspirado em Samuel Johnson bem que podia ter criado a máxima: “o moralismo é o primeiro refúgio do canalha”. Ler e reler Nelson Rodrigues é prazeroso, mas o risco é a gente se sentir diante da nossa própria essência e enxergar o “óbvio ululante”. Com a esperança de que o pecador tem salvação.

A chamada para o embarque foi, apenas, um intervalo. Acomodado em assentos ofensivos ao mais discreto quadril, leio uma espécie de recado de Nelson “Amigos, há um momento, na vida dos povos, em que o país tem de ser anunciado, promovido, profetizado”. Eis o que, ele disse sobre Pelé, depois do jogo América do Rio, em 22/2/1958, dezessete anos, que fez 4 dos cinco gols do Santos: “O que nós chamamos realeza é, acima de tudo, um estado de alma. Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: a de se sentir rei, da cabeça aos pés”. Somente, Nelson acreditava no escrete brasileiro e afirmou, em janeiro de 1959, “Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los com íntima efusão: ‘como vai, colega’?”

Cabe uma explicação sobre a escolha da releitura do livro: naquele dia 17/10/2024, a Folha de São Paulo publicou o ranking sobre os rendimentos dos 10 futebolistas mais bem pagos do ano: Cristiano Ronaldo é o primeiro (jogador do Al Nassr US$ 285 milhões (R$ 1,6 bilhões – 1.247, no campo e 369, fora do campo); Messi na sequência (Inter Miami) US$ 135 milhões; o terceiro é Neymar US$ 110 milhões (Al Hilal);o sétimo é Vinicius Júnior (Real Madrid) US$ 55 milhões e por aí vai.

Nada contra. O Futebol já nasceu global e irmão do capitalismo. Aí o dinheiro vai a trás. Tem quem pague. A minha curiosidade: o que diria Nelson Rodrigues? Disse que jogador campeão do mundo é herói e herói não se vende quando o Vasco quis negociar Vavá.

O mundo mudou e o futebol virou um grande “negócio”. Talvez, ele dissesse que as chuteiras são de ouro e, no caso brasileiro, as chuteiras estão pesando. Um último registro: Papai do Céu poupou Nelson Rodrigues do humilhante 7×1.

 

Gustavo Krause foi ministro da Fazenda 

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