São Paulo faz 470 anos com trilha tão rica, variada e inquieta quanto a cidade


Metrópole é retratada em cancioneiro que passa por rap dos Racionais MC’s, samba de Adoniran Barbosa, a espirituosidade de Rita Lee, o traço modernista de Itamar Assumpção e o rock punk do grupo Inocentes. ♪ ANÁLISE – Com a edição de Terra da garoa, single autoral em que celebra encantos e complexidades de São Paulo (SP), o rapper Thaíde adiciona mais uma música à trilha sonora da cidade que faz 470 anos hoje, 25 de março de 2024.
Fundada em 1554, a capital do estado de São Paulo tem trilha sonora tão multifacetada como a alma da cidade, mapeada ao longo dos anos em composições que ultrapassam o romantizado cruzamento da Ipiranga com a avenida São João.
Cenário atual de disputa politica que envolve os viciados em crack reunidos nas ruas e esquinas, o centro de São Paulo (SP) já foi palco para a cena de sangue narrada na letra do samba-canção Ronda (Paulo Vanzolini, 1953), música referencial na trilha da cidade.
Ronda é tão referencial que guiou Sampa (Caetano Veloso, 1978), uma das mais perfeitas traduções musicais da metrópole ao lado do cancioneiro de Adoniran Barbosa (1910 – 1982), compositor paulistano que retratou Sampa em sambas como o Trem das onze (1964) e Samba do Arnesto (1953).
O recorte social de São Paulo na obra de Adoniran Barbosa ainda reverbera com força na trilha sonora da cidade. Mas outros sons e ritmos compõem essa trilha de diversidade afinada com as agudas diferenças sociais de população estimada em 11,4 milhões de acordo com o censo de 2022.
Cidade com a dimensão social de um país, São Paulo também é a metrópole que abriga as comunidades pobres da zona sul retratadas pelo grupo Racionais MC’s (foto ao alto) em Fim de semana no parque (Mano Brown e Edi Rock, 1993), que abrange a Cohab City (Netinho de Paula, 1995) – sucesso do grupo de pagode Negritude Jr. – e que abriga As mina de Sampa perfiladas com acidez por Rita Lee (1947 – 2023) em parceria com Roberto de Carvalho gravada no álbum Balacobaco (2003).
Afiada tradutora do espírito da cidade, Rita já expusera angústias dos paulistanos nos versos de E lá vou eu (1975), música que compôs para a trilha sonora da novela O grito (TV Globo, 1975 / 1976).
Tais inquietações movem os que frequentam “os bares cheios de almas vazias” poetizados por Criolo em Não existe amor em SP (2011), standard deste rapper criado no Grajaú, bairro periférico que inspirou o artista a compor Grajauex (2011).
Adoniran Barbosa (1910 – 1982), compositor que retratou São Paulo (SP) em sambas escritos com prosódia popular
Elifas Andreato
Na geografia da cidade, o Grajaú está distante da Paulista, a avenida cheia de faróis prestes a abrir – cenário da melancolia entranhada na letra de Paulista (1990), composição de Eduardo Gudin e J.C. Costa Neto lançada na voz de Vânia Bastos.
Por via mais noturna, Itamar Assumpção (1949 – 2003) seguiu a trilha underground da cidade em Sampa midnight (1983). Dentro desse traço modernista da Vanguarda Paulista da década de 1980, cabe mencionar o flash cinzento de Ladeira da memória (Zécarlos Ribeiro, 1983) – hit alternativo do Grupo Rumo, contemporâneo de Itamar – e São Paulo, São Paulo (Oswaldo Luís, Mário Biafra, Claus Petersen, Wandi Doratiotto e Marcelo Galbetti, 1983), música do grupo Premeditando o Breque. “O clima engana, a vida é grana em São Paulo”, avisou, sério, o Premê, grupo associado ao humor.
Baiano que se aclimatou em São Paulo, o compositor Tom Zé também sempre fez pulsar a veia crítica ao cantar a cidade. Basta ouvir São São Paulo, meu amor – música com a qual venceu festival de 1968 – e o samba Augusta, Angélica, Consolação (1973), endereço de aflições expostas pelo autor de Correio da Estação do Brás (1978).
Se o também baiano Gilberto Gil fez em Punk da periferia (1983) há 41 anos o que atualmente se pode chamar de apropriação cultural, os legítimos punks mostraram que a chapa paulistana sempre esteve quente, sobretudo nas periferias. Clássico do movimento punk que explodiu em Sampa no alvorecer dos anos 1980, Pânico em SP (Clemente Nascimento, 1982), petardo do grupo Inocentes, retrata bem a aflição provocada nas periferias pelo barulho de sirenes.
São as sirenes tão fatais que a cidade tem demais, como alertaram os compositores Carlos Takaoka, Cláudio Carina e Sérgio P. Lopes em Documentário (1992), saborosa e pouco conhecida música que mapeia grande parte de São Paulo na voz de Rosa Marya Colin em gravação feita pela cantora com o guitarrista André Christovam no álbum Via paulista (1992).
Os sentimentos despertados pelas sirenes destoam da vibração criativa exposta por Marina Lima em #SPfeelings (2014) – música de álbum, Clímax (2011), pautado pela mudança da artista carioca para São Paulo (SP) – e da confiança juvenil de Mallu Magalhães na letra de São Paulo (2014).
E por falar em juventude, Rua Augusta (Hervé Cordovil, 1964) – rock lançado há 57 anos pelo cantor Ronnie Cord (1943 – 1986) nos primórdios do universo pop brasileiro – permanece como retrato perene da adrenalina que guia os manos paulistanos de posse um carro.
A Rua Augusta de Ronnie Cord exclui as paisagens mais escuras retratadas por Criolo e Emicida no rap Rua Augusta (Emicida e Casp, 2013), com versos sobre prostitutas com hematomas no corpo e na alma.
Do rap de Thaíde ao samba de Adoniran Barbosa, passando pelo punk e pelos traços vanguardistas da turma que deu novo rumo à música da cidade a partir de 1980, a trilha sonora de São Paulo é tão diversificada e interessante quanto a metrópole que hoje completa 470 anos de intensa vida urbana.
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