Do ‘Amanhecer Violento’ à ‘Guerra Civil’: noção de identidade está na base do fascismo trumpista

Os EUA têm uma predileção especial por se imaginar como vítimas. Essa imagem costuma aparecer de forma recorrente em produtos culturais americanos, pelo menos desde a Guerra Fria. Se Trump transforma agora todo e qualquer imigrante em inimigo do país, forjando a ideia de uma fantasiosa invasão estrangeira, em 1984, chegava aos cinemas o filme ‘Amanhecer Violento’, do diretor John Milius, talvez o filme preferido de grande parte das forças armadas daquele país e que tem um impacto muito grande em como eles se enxergam.

Enquanto a política externa dos EUA promovia espionagem e financiamentos de golpes militares contra governos populares em toda a América Latina, o homem médio ia ao cinema para encontrar no roteiro de ‘Amanhecer Violento’ uma América do Norte idílica e pacífica, de repente invadida pelo terrível Exército Vermelho, composto por tropas russas e latino-americanas. Uma inversão completa do que acontecia na realidade.

Amanhecer Violento

No prólogo que dá o contexto do filme, a União Soviética enfrenta sua pior safra de trigo e decide invadir a Polônia para conter uma revolta crescente. Em paralelo, uma força de invasão formada por tropas cubanas e nicaraguenses, cerca de meio milhão de soldados, avança sobre a América Central, levando El Salvador e Honduras ao colapso sob o comunismo, desencadeando uma revolução sangrenta no México. Partidos ambientalistas na Alemanha exigem a retirada de armas nucleares de solo europeu, levando a OTAN a se dissolver. Nesse cenário, os Estados Unidos se veem isolados, vulneráveis e prestes a enfrentar uma guerra em seu próprio território. 

Aqui não se trata de ucronia, ou história alternativa, gênero literário tão bem desenvolvido em ‘O homem do castelo do alto’, por Philip K. Dick, que imagina um desvio histórico no qual os EUA são ocupados por nazistas alemães e japoneses no final da Segunda Guerra Mundial. ‘Amanhecer Violento’ vai mais longe. Com sua retórica ultranacionalista, é uma espécie de ‘Tropa de Elite’ do exército norte-americano. E talvez esteja entre os filmes preferidos de Trump.  

No alvorecer da pandemia, uma corrente de e-mails trocados entre funcionários da administração Trump mostrando preocupações sobre a resposta do governo à COVID-19 recebeu o nome de ‘Amanhecer Vermelho’. 

No desenrolar do filme dos anos 1980, um grupo de resistência formado por estudantes secundaristas e escoteiros forma uma milícia chamada ‘Wolverines’, que usa táticas de guerrilha nas montanhas contra os invasores. 

Militainment

O filme inspirou também um dos jogos de guerra mais populares da indústria dos games: Call of Duty: Modern Warfare 2, lançado em 2009. Nele, o jogador enfrenta uma invasão russa em solo norte-americano, numa encenação que ecoa diretamente o enredo de Amanhecer Violento. A missão intitulada “Wolverines!”, uma referência explícita ao grupo guerrilheiro juvenil do filme, reforça esse vínculo. Assim como na ficção de John Milius, o jogo transforma os Estados Unidos em vítima e bastião da resistência, exaltando o heroísmo militar diante de uma suposta ameaça externa. Ao levar essa fantasia para o campo interativo, ‘Modern Warfare 2’ utiliza a retórica do medo, naturaliza o militarismo como defesa legítima e reafirma a supremacia americana como salvação do mundo livre.

Em 2009, ano de lançamento de ‘Modern Warfare 2’, o Exército americano utilizou trailers do jogo em eventos de alistamento e feiras de tecnologia militar, justamente porque o game apresentava um retrato heroico e altamente estilizado das forças armadas. Essa colaboração informal reforça a dimensão propagandística da franquia, alinhando-se ao que teóricos da mídia chamam de “militainment”: a fusão entre militarismo e entretenimento.

Guerra Civil

Mais recentemente, o filme Guerra Civil (2024), de Alex Garland, estrelado por Wagner Moura e Kirsten Dunst, oferece um contraplano radical à fantasia paranoica de Amanhecer Violento. Em vez de imaginar uma invasão estrangeira, Garland projeta um futuro próximo em que os próprios Estados Unidos implodem em conflito interno, com milícias regionais armadas enfrentando o governo federal. 

Wagner Moura interpreta um correspondente de guerra que, junto com Kirsten Dunst e outros jornalistas, atravessa um país devastado, documentando o colapso da democracia e a banalização da violência política. 

Se ‘Amanhecer Violento’ e ‘Modern Warfare 2’ operam no registro da vitimização heroica e da exaltação militar, ‘Guerra Civil’ desmonta esse imaginário, expondo o fascismo latente e a brutalidade endógena do trumpismo e da cultura armamentista norte-americana. Nesse sentido, o filme não apenas nega a lógica do inimigo externo – tão cara à propaganda nacionalista americana – como também reposiciona o olhar, a partir do registro jornalístico, como um espelho crítico da ruína que vem de dentro. 

Trata-se, assim, de uma narrativa de ruptura, que aponta para a falência simbólica do mito fundacional dos Estados Unidos como bastião da liberdade.

Em uma das cenas mais poderosas do longa, o grupo de jornalistas encontra um miliciano da extrema-direita identitária, basculando corpos numa vala coletiva, à maneira dos genocidas históricos. Numa brilhante sequência de interpretação de Jesse Plemons, ele olha para Joel, personagem de Wagner Moura e pergunta: “Que tipo de americano você é? América Central? Do Sul?”.

Essa certeza de uma identidade essencialista para o verdadeiro cidadão norte-americano define, no contexto do filme, não só aqueles que têm seus direitos fundamentais respeitados, mas quem merece viver e quem merece morrer. 

A conformidade entre uma ideia nação e uma identidade nacional, a história nos ensinou essa lição difícil muitas vezes, é terreno fértil para forças de desumanização e incontáveis crimes contra a dignidade e atentados contra a vida. 

Os ideais de respeito a dignidade da pessoa humana e solidariedade entre seres humanos, independente de origem, crença e território, ganharam forma em tratados internacionais depois dos horrores da Segunda Guerra, com o objetivo de que esses horrores não se repitam. 

Com o extermínio sistemático do povo palestino em Gaza e a perseguição de imigrantes nos EUA, o mundo parece passar pelo derradeiro e violento crepúsculo dos valores humanistas. Mas não sem resistência das instituições mais arejadas, das redes de solidariedade transnacionais e da indignação cotidiana e revolta sistemática daqueles não se curvam às sombras, como Masafer Yatta, na Cisjordânia, o barco ativista preso em Gaza, milhares de palestinos combatendo armas de fogo com pedras e cetenas de pessoas marchando com bandeiras e pedras, nas ruas dos EUA nesta semana.   

*Marcos Vinícius Almeida é escritor, jornalista e redator. Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP, colaborou com a Ilustríssima da Folha de S. Paulo e O Globo. É autor do romance Pesadelo Tropical (Aboio, 2023).

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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