O mar territorial do Brasil está prestes a ser leiloado para que empresas estrangeiras instalem grandes usinas de energia eólica. Em 10 de janeiro de 2025 foi sancionado o marco legal da energia eólica offshore no Brasil (Lei 15.097/2025), cujo texto concentra-se sobretudo em regular as modalidades de oferta e outorga das áreas marinhas e a contrapartida que as empresas outorgadas devem dar ao Estado por explorar essas áreas para produção de energia.
Atualmente são projetos 103 projetos de usinas de eólicas offshore em licenciamento no Ibama, totalizando 15.992 aerogeradores fincados no mar ao longo do litoral dos estados Maranhão, Ceará, Piauí, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul (informações disponíveis neste link).
A maioria das empresas proponentes têm capital europeu e são do mesmo grupo econômico de empresas de energia fóssil, como por exemplo a Shell Brasil Petróleo Ltda, empresa brasileira cuja maior participação no capital social pertence à Shell Brazil Holding Bv, de origem britânica. A Shell submeteu seis projetos de energia eólica offshore, emplacando o discurso verde da transição energética ao mesmo tempo em que foi condenada em tribunais holandeses por excesso de emissão de CO2 (mais informações aqui).
A geração de energia eólica dentro do mar responde a uma nova demanda europeia: o hidrogênio verde, grande lobby das energias renováveis, pois pode ser utilizado para veículos de células de combustível e armazenamento de energia. O hidrogênio verde é obtido por meio de um processo chamado eletrólise da água, que envolve a separação da água (H2O) em hidrogênio (H2) e oxigênio (O2) utilizando eletricidade, neste caso, com a energia que vem das usinas eólicas offshore. Por isso o hidrogênio é “verde”, porque teoricamente a energia é “limpa”.
Essa energia em forma de hidrogênio será exportada para Europa, consolidando um antigo objetivo colonialista: destruir territórios e vidas no sul global para garantir desenvolvimento e qualidade de vida aos europeus. Em 2023 o governo do Ceará assinou inúmeros memorandos com o objetivo de criar o “corredor de hidrogênio verde” entre o Porto do Pecém e o Porto de Roterdão, nos Países Baixos. Fortaleza é a capital do Brasil mais perto da Europa e o Ceará pretende liderar a produção e exportação de hidrogênio verde no país (informação disponível aqui).
Os povos e comunidades tradicionais que vivem na zona costeira denunciam impactos desses megaprojetos para o território e o aquatório – conceito que conheci através de Carlos Santos, extrativista da ResEx de Canavieiras, utilizado por pescadores e extrativistas marinhos para determinar que os corpos d’água estão incluídos na noção de território de povos e comunidades tradicionais – em que vivem, a autonomia alimentar, seu modo de vida ancestral e os ecossistemas marinhos.
A maioria das usinas está localizada entre 10 e 50 km da costa, sobreposta à rota de navegação para pesca artesanal, estabelecida há centenas de anos por gerações de pescadores. Com a sobreposição, a pesca será proibida. A Diretoria de Portos e Costas da Marinha do Brasil, através da publicação das Normas de Autoridade Marítima, normatiza o uso das zonas de segurança para embarcações e estabelece que nenhuma embarcação poderá pescar, navegar ou se aproximar a menos de quinhentos metros das plataformas offshore, considerando esse raio de quinhentos metros como área de segurança (Normam-204/dpc).
A diminuição da pesca artesanal afetará a autonomia alimentar dos povos do mar, a cadeia econômica do pescado e a oferta de peixes para o consumidor final, que certamente será prejudicado com o aumento do preço, visto que a pesca artesanal abastece 70% do consumo das famílias brasileiras segundo estudo publicado pelo IPEA em 2020. Outras atividades como turismo, esportes náuticos e pesquisas científicas também serão afetadas. O Ibama destaca dois métodos utilizados na produção de energia eólica offshore que causam danos à fauna marinha (mais informações aqui): “pile driving (bate-estacas) – equipamento utilizado para execução de fundações profundas, método no qual se finca estacas no solo” e “suction buckets (balde de sucção) – tipo de fundação no solo marítimo que faz a ancoragem por pressão”. Esses métodos alteram a rota e comprometem a audição de animais marinhos.
Além disso, a fiação que levará a energia das torres dentro do mar à subestação já em terra firma é subterrânea, comprometendo formações rochosas no subsolo marítimo.
Os processos de estudo e implantação de usinas eólicas e solares em nossos territórios não estão precedidos pela consulta livre, prévia e informada aos povos e comunidades afetados, descumprindo a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que foi internalizada através do Decreto 5.051/2004 e tem valor de emenda constitucional por força do art. 5º, §3º da Constituição. Protocolos de consulta e consentimento são documentos elaborados por povos e comunidades tradicionais de forma autônoma, sem a participação do Estado ou empresas. Esses documentos definem como cada povo e comunidade deve ser consultado, respeitando suas cosmovisões, modos de vida, gestão do território e organizações políticas (conheça os protocolos de consulta e consentimento do Brasil e de outros países neste site).
Caso as propostas de implantação de eólicas offshore sejam aprovadas, nosso país se tornaria uma grande indústria de energia eólica com nosso povo submerso em ferragens sem acesso à terra e ao mar, visto que as usinas de eólicas onshore privatizaram boa parte do território brasileiro. As empresas desenvolvedoras de megaprojetos de energia pretendem fazer dos territórios de povos e comunidades tradicionais zonas de sacrifício, sob a justificativa que destruir nossas vidas e territórios é um mal necessário. No entanto, não existem propostas de implantação para usinas de energia eólica e solar nas vastas plantações de soja e eucalipto.
A continuidade do modo de produção capitalista reside na capacidade que o mercado tem de responder às diferentes crises econômicas. Nesse contexto, usinas de energia renovável são apresentadas pelos governos e empresas como uma solução para o problema macroeconômico das mudanças climáticas, pois garantem a acumulação do capital, especialmente em tempos de crise, um negócio que mobiliza bilhões de dólares, vindo sobretudo de empresas estrangeiras que funcionam no país através de filiais e holdings.
É possível e necessário se questionar se a transição energética da forma como está sendo planejada e executada no Brasil é realmente uma solução para o problema das mudanças climáticas ou um novo arranjo do latifúndio colonialista, por meio da estrangeirização de terras e mares brasileiros, um processo de controle do nosso território para geração de lucro das grandes empresas estrangeiras que atuam sob a justificativa de agenda contra o aquecimento global e as mudanças climáticas.
Se a transição energética é uma resposta do mercado às mudanças climáticas, quais outras respostas existem? Elionor Ostrom, economista estadunidense, analisou a gestão de bens comuns de forma comunitária e cooperativa. Em seus estudos empíricos, Ostrom (1990) observou comunidades que se auto-organizavam há centenas de anos para gerir bens de uso comum: sistema de irrigação no Nepal, pesca costeira no estado de Maine (EUA), pastagens comuns em Torbel (Suíça), entre outros (OSTROM, ELINOR (1990), Governing the commons: The evolution of institutions for collective action, Cambridge, Cambridge University Press). Nessas comunidades, as pessoas interagem entre si respeitando regras em comum para a utilização coletiva de bens naturais.
Para a autora, o sucesso na gestão cooperativa dos bens comuns acontece através de um conjunto de regras elaboradas, impostas e respeitadas pela própria comunidade. Essas regras necessárias para garantir a boa gestão de recursos comuns, repetidamente observadas em seus estudos de campo, são chamadas de oito princípios da teoria da governança. São eles: 1. Demarcação clara das fronteiras dos recursos de bem comum e dos seus utilizadores; 2. As regras definidas têm de ser adequadas às condições locais (época, espaço, tecnologias disponíveis, quantidades de recursos disponíveis…); 3. Os utilizadores participam na definição/adaptação das próprias regras – acordos colectivos; 4. Os fluxos de benefícios proporcionados pela gestão comum são proporcionais aos custos de utilização; 5. Há um reconhecimento das regras da comunidade pelas autoridades externas; 6. É realizada a monitorização e são respeitadas as regras por parte dos utilizadores, com penalizações para os transgressores; 7. É garantido o fácil acesso a meios de resolução de conflitos bem como a custos reduzidos; 8. Há uma ligação na gestão de recursos de menor escala com os de maior escala, partindo do particular para o geral (OSTROM 1990, pág. 90-102).
Com base na teoria de Ostrom, várias pesquisas são desenvolvidas sobre a governança dos bens comuns para enfrentamento às mudanças climáticas. Uma estratégia eficaz e com reconhecimento científico é a demarcação e proteção de territórios de povos e comunidades tradicionais e a criação de mais unidades de conservação. Um relatório econômico produzido pelo World Resources Institute atesta que a posse e o respeito aos direitos comunitários em áreas florestais indígenas bacia Amazônica em Bolívia, Brasil e Colômbia é uma solução de baixo custo, que pode ajudar governos a atingirem seus objetivos climáticos em suas Contribuições Determinadas Nacionalmente (CDNs).
Proteger e cuidar das matas e do povo que nela habita deve ser a nossa resposta às mudanças climáticas. Se não pelo Estado, pela nossa força como povo organizado. Essa é uma tarefa que já está sendo refletida e executada por diversos movimentos sociais, povos indígenas, quilombolas e comunidades de pescadores da zona costeira do nosso país.
*Melka Barros é mestre em ciências jurídico-econômicas pela Universidade do Porto.
**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.